quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Benção do Presépio

Benção do Presépio
(Rit. Rom. , tit IX, Cap. IX 15 e Instr. de 26/09/64, n. 77)

(Na preparação ou na noite do natal)

V/. A nossa proteção está em nome do Senhor.
R/. Que fez o céu e a terra.
V/. O Senhor esteja convosco.
R/. Ele está no meio de nós.

Oremos
Deus eterno e todo-poderoso, não reprovais a escultura ou a pintura de imagens (ou estátuas) dos santos, para que à sua vista possamos meditar os seus exemplos e imitar as suas virtudes. Nós vos pedimos que abençoeis + e santifiqueis + estas imagens, feitas para recordar e honrar o vosso Filho e Nosso Senhor, Jesus Cristo.
Concedei a todos os que diante destas desejarem venerar e glorificar o vosso Filho Unigênito, que, por seus merecimentos e intercessão, alcancem no presente a vossa graça e no futuro a glória eterna.
Por Cristo, nosso Senhor.
R/. Amém.

(E asperge as imagens com água benta)
  

J  H  S

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A Coroa do Advento

Origem

A coroa do Advento tem as suas raízes em tradições precristãs dos povos do norte, entre os séculos IV e VI. Durante o frio e a escuridão de dezembro, juntavam-se coroas de ramos verdes e acendiam-se fogueiras como sinal de esperança da chegada da Primavera.

No século XVI, católicos e protestantes alemães começaram a utilizar este símbolo durante o Advento: as tradições antigas encerravam uma semente de verdade que poderia exprimir a Verdade suprema: Jesus é a Luz que veio, que está conosco e virá na sua glória. As velas antecipam a luz que vem até nós no Natal.

A coroa do Advento, cujas quatro velas se acendem progressivamente, domingo após domingo até à solenidade do Natal, faz memória das diversas etapas da história da salvação de Cristo antes da vinda de Cristo, e é símbolo da luz profética que ia iluminando a noite na espera, até ao amanhecer do Sol da justiça (cf. Mt 3,20; Lc 1,78).

A simbologia

- A forma circular: o círculo não tem princípio nem fim, é sinal da eternidade;
- Os ramos verdes: simbolizam a esperança e a vida;
- As quatro velas: As velas acendem-se uma a uma, nos quatro domingos do Advento; Simbolizam a luz no meio das trevas: a salvação que Jesus Cristo veio trazer é luz para a vida de cada pessoa;
- A cor vermelha simboliza o amor de Deus.

A coroa do Advento pode ser benzida por um sacerdote.

sábado, 26 de março de 2011

As Duas Faces do Amor: "Eros" e "Ágape"

Primeira pregação de Quaresma do padre Raniero Cantalamessa

Primeira pregação de Quaresma à Cúria Romana, em presença do Papa, pelo padre Raniero Cantalamessa, OFMCap.

AS DUAS FACES DO AMOR: EROS E ÁGAPE
1. As duas faces do amor

Com as prédicas desta Quaresma, eu gostaria de continuar o esforço, iniciado no Advento, de trazer uma pequena contribuição à reevangelização do Ocidente secularizado, que constitui nesta hora a preocupação principal de toda a Igreja e, em particular, do Santo Padre Bento XVI.

Há um âmbito em que a secularização age de maneira especialmente difusa e nefasta, e é o âmbito do amor. A secularização do amor consiste em separar o amor humano de Deus, em todas as formas desse amor, reduzindo-o a algo meramente “profano”, onde Deus sobra e até incomoda.

Mas o amor não é um assunto importante apenas para a evangelização, ou seja, para as relações com o mundo. Ele importa, antes de todo o mais, para a própria vida interna da Igreja, para a santificação dos seus membros. É nesta perspectiva que se situa a encíclica Deus caritas est, do Papa Bento XVI, e é nela que nós também nos colocamos para estas reflexões.

O amor sofre de uma separação nefasta não só na mentalidade do mundo secularizado, mas também, do lado oposto, entre os crentes e, em particular, entre as almas consagradas. Poderíamos formular a situação, simplificando ao máximo, assim: temos no mundo um eros sem ágape; e entre os crentes, temos frequentemente um ágape sem eros.

O eros sem ágape é um amor romântico, mas comumente passional, até violento. Um amor de conquista, que reduz fatalmente o outro a objeto do próprio prazer e ignora toda dimensão de sacrifício, de fidelidade e de doação de si. Não é preciso insistir na descrição desse amor, porque se trata de uma realidade que temos todo dia diante dos nossos olhos, propagandeada com estrondo pelos romances, filmes, novelas, internet, revistas. É o que a linguagem comum entende, hoje, com a palavra “amor”.

Para nós é mais útil entender o que significa ágape sem eros. Na música, existe uma diferenciação que pode nos ajudar a ter uma ideia: a diferença entre o jazz quente e o jazz frio. Eu li certa vez essa caracterização dos dois gêneros, mas sei que não é a única possível. O jazz quente (hot) é o jazz apaixonado, ardente, expressivo, feito de ímpetos, de sentimentos e, portanto, de improvisações originais. O jazz frio (cool) é o profissional: os sentimentos se tornam repetitivos, o estro é substituído pela técnica, a espontaneidade pelo virtuosismo.

Com base nessa distinção, o ágape sem eros é um “amor frio”, um amar parcial, sem a participação do ser inteiro, mais por imposição da vontade do que por ímpeto íntimo do coração. Um entrar num cenário predefinido, em vez de criar um próprio, realmente irrepetível, como irrepetível é cada ser humano perante Deus. Os atos de amor voltados para Deus parecem aqueles de namorados desinspirados, que escrevem à amada cartas copiadas de modelos prontos.

Se o amor mundano é um corpo sem alma, o amor religioso praticado assim é uma alma sem corpo. O ser humano não é um anjo, um espírito puro; é alma e corpo substancialmente unidos: tudo o que ele faz, amar inclusive, tem que refletir essa estrutura. Se o componente humano ligado ao tempo e à corporeidade é sistematicamente negado ou reprimido, a saída será dúplice: ou seguir adiante aos arrastos, por senso de dever, por defesa da própria imagem, ou ir atrás de compensações mais ou menos lícitas, chegando até os dolorosíssimos casos que estão afligindo atualmente a Igreja. No fundo de muitos desvios morais de almas consagradas, não é possível ignorá-lo: há uma concepção distorcida e retorcida do amor.

Temos, então, um duplo motivo e uma dupla urgência de redescobrir o amor na sua unidade original. O amor verdadeiro e integral é uma pérola encerrada entre duas conchas que são o eros e o ágape. Não podem ser separadas, essas duas dimensões do amor, sem destruí-lo, como o hidrogênio e o oxigênio não podem ser separados sem se privarem da água.

2. A tese da incompatibilidade entre os dois amores

A reconciliação mais importante entre as duas dimensões do amor é prática. É aquela que acontece na vida das pessoas, mas, para ser possível, ela precisa começar pela reconciliação entre o eros e o ágape inclusive teoricamente, na doutrina. Isto nos permitirá conhecer finalmente o que é que se entende por estes dois termos tão comumente usados e subentendidos.

A importância da questão nasce do fato de existir uma obra que popularizou em todo o mundo cristão a tese oposta da inconciliabilidade das duas formas de amor. É o livro do teólogo luterano sueco Anders Nygren, intitulado Eros e Ágape. Podemos resumir o pensamento dele nestes termos: eros e ágape designam dois movimentos opostos. O primeiro indica ascensão e subida do homem para Deus e para o divino como próprio bem e própria origem; o outro, o ágape, indica a descida de Deus até o homem com a encarnação e a cruz de Cristo, e, portanto, a salvação oferecida ao homem sem mérito nem resposta de sua parte, a não ser a fé e somente a fé. O Novo Testamento fez uma escolha precisa, usando, para exprimir o amor, o termo ágape, e refutando sistematicamente o termo eros.

Foi São Paulo quem recolheu e formulou com mais pureza essa doutrina do amor. Depois dele, ainda segundo a tese de Nygren, essa antítese radical se perdeu para dar lugar a tentativas de síntese. Assim que o cristianismo entra em contato cultural com o mundo grego e a visão platônica, já com Orígenes, há uma reavaliação do eros, como movimento ascensional da alma rumo ao bem e ao divino, como atração universal exercitada pela beleza e pelo divino. Nesta linha, o Pseudo Dionísio Areopagita escreverá que “Deus é eros” [1], substituindo com este termo o ágape da célebre frase de João (I Jo, 4,10).

No ocidente, uma síntese análoga foi feita por Agostinho com a doutrina da caritas, entendida como doutrina do amor descendente e gratuito de Deus pelo homem (ninguém falou da “graça” com mais força do que ele), mas também como anseio do homem pelo bem e por Deus. É dele a afirmação: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e inquieto está o nosso coração até descansar em ti” [2]. Também é dele a imagem do amor como um peso que atrai a alma, como por força de gravidade, para Deus, como ao lugar do próprio repouso e prazer [3]. Tudo isso, para Nygren, insere um elemento do amor de si, do próprio bem, e, portanto, de egoísmo, que destrói a pura gratuidade da graça; é uma recaída na ilusão pagã de fazer a salvação consistir numa ascensão a Deus, em vez de na gratuita e imotivada descida de Deus até nós.

Prisioneiros desta impossível síntese entre eros e ágape, entre amor de Deus e amor de si, são, para Nygren, São Bernardo, quando define o grau supremo do amor de Deus como um “amar a Deus por si mesmo” e um “amar a si mesmo por Deus” [4]; São Boaventura, com seu ascensional Itinerário da mente para Deus; e São Tomás de Aquino, que define o amor de Deus infuso no coração do batizado (cf. Rom, 5,5) como “o amor com que Deus nos ama e nos faz amá-lo” (amor quo ipse nos diligit et quo ipse nos dilectores sui facit) [5]. Isto viria a significar que o homem, amado por Deus, pode, por sua vez, amar a Deus, dar-lhe algo de seu, o que destruiria a absoluta gratuidade do amor de Deus. No plano existencial, ainda de acordo com Nygren, o mesmo desvio acontece na mística católica. O amor dos místicos, com a sua fortíssima carga de eros, nada é, para ele, senão amor sensual sublimado, uma tentativa de estabelecer com Deus uma relação de presunçosa reciprocidade em amor.

Quem rompeu a ambiguidade e devolveu à luz a pura antítese paulina, segundo o autor, foi Lutero. Fundamentando a justificação apenas na fé, ele não excluiu a caridade do momento-base da vida cristã, como o acusa a teologia católica; antes, libertou a caridade, o ágape, do elemento espúrio do eros. À fórmula do “somente a fé”, com exclusão das obras, corresponderia, em Lutero, a fórmula do “somente o ágape”, com exclusão do eros.

Não me cabe estabelecer se o autor interpretou corretamente neste ponto o pensamento de Lutero, que, deve-se dizer, nunca pôs o problema em termos de contraste entre eros e ágape como fez com fé e obras. É significativo, no entanto, que Karl Barth, num capítulo da sua Dogmática Eclesial, também chegue ao mesmo resultado que Nygren de um contraste insanável entre eros e ágape. “Onde entra em cena o amor cristão”, escreve ele, “começa de súbito o conflito com o outro amor, e este conflito não tem mais fim” [6]. Eu digo que se isto não é luteranismo, é sem dúvida teologia dialética, teologia do “aut-aut”, da antítese, não da síntese.

O contragolpe desta operação é a radical mundanização e secularização do eros. Enquanto certa teologia retirava o eros do ágape, a cultura secular era bem feliz, por sua vez, ao retirar o ágape do eros, ou seja, ao retirar do amor humano toda referência a Deus e à graça. Freud apresentou para isto uma justificativa teórica, reduzindo o amor a eros e o eros a libido, uma mera pulsão sexual que luta contra toda repressão e inibição. É o estágio a que se reduz hoje o amor em muitas manifestações da vida e da cultura, principalmente no mundo do espetáculo.

Dois anos atrás eu estava em Madri. Os jornais só faziam falar de uma certa mostra de arte na cidade, intitulada As lágrimas do eros. Era uma mostra de obras artísticas de cunho erótico – quadros, desenhos, esculturas – que pretendiam pôr em foco o inseparável vínculo que existe, na experiência do homem moderno, entre eros e thanatos, entre amor e morte. À mesma constatação se chega quando se lê a coletânea de poesias As flores do mal, de Baudelaire, ou Uma temporada no inferno, de Rimbaud. O amor que por natureza deveria levar à vida acaba ao invés levando à morte.

3. Retorno à síntese

Se não podemos mudar de uma vez a ideia de amor que o mundo possui, podemos, sim, corrigir a visão teológica, que, sem querer, a favorece e legitima. É o que fez de maneira exemplar o papa Bento XVI com a encíclica Deus caritas est. Ele reafirma a síntese católica tradicional expressando-a com os termos modernos. “Eros e ágape”, lemos ali, “amor ascendente e amor descendente, não se deixam jamais separar de todo um do outro [...]. A fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto ao original fenômeno humano que é o amor, mas aceita o homem todo, intervindo na sua procura pelo amor para purificá-la, destruindo, em paralelo, novas dimensões suas” (7-8). Eros e ágape estão unidos à própria fonte do amor, que é Deus: “Ele ama”, segue o texto da encíclica, “e este seu amor pode ser qualificado certamente como eros, que, no entanto, é também e totalmente ágape” (9).

Entende-se o acolhimento insolitamente favorável que este documento pontifício encontrou mesmo nos ambientes leigos mais abertos e responsáveis. Dá esperança ao mundo. Corrige a imagem de uma fé que toca o mundo em tangente, sem penetrá-lo, com a imagem evangélica da levedura que faz a massa fermentar; substitui a ideia de um reino de Deus que veio julgar o mundo pela de um reino de Deus que veio salvar o mundo, começando pelo eros que é a sua força dominante.

À visão tradicional, própria tanto da teologia católica como da ortodoxa, pode-se dar, creio eu, uma confirmação também do ponto de vista da exegese. Quem sustenta a tese da incompatibilidade entre eros e ágape se baseia no fato de o Novo Testamento evitar com esmero – e, ao parecer, propositalmente – o termo eros, usando em seu lugar sempre e somente ágape (a não ser por algum raro emprego do termo philia, que indica um amor de amizade).

O fato é verdadeiro, mas não são verdadeiras as conclusões que dele se tiram. Supõe-se que os autores do NT estivessem a par tanto do sentido que o termo eros tinha na linguagem comum (o eros assim chamado “vulgar”) como do sentido elevado e filosófico que tinha, por exemplo, em Platão, o chamado eros “nobre”. Na aceitação popular, eros indicava mais ou menos o que indica hoje quando se fala de erotismo ou de filmes eróticos: a satisfação do instinto sexual, um degradar-se mais do que elevar-se. Na aceitação nobre, indicava um amor pela beleza, a força que mantém o mundo e que impulsiona todos os seres à unidade, aquele movimento de ascensão rumo ao divino que os teólogos dialéticos reputam incompatível com o movimento de descida do divino até o homem.

É difícil defender que os autores do NT, dirigindo-se a pessoas simples e de nenhuma cultura, pretendessem lhes falar do eros de Platão. Eles evitaram o termo eros pelo mesmo motivo que o pregador de hoje evita o termo erótico, ou, se o emprega, é somente em sentido negativo. O motivo é que, tanto naquele tempo como agora, a palavra evoca o amor na sua expressão mais egoísta e sensual [7]. A desconfiança dos primeiros cristãos quanto ao eros se agravava ainda pelo papel que ele desempenhava nos desenfreados cultos dionisíacos.

Tão logo o cristianismo entra em contato e diálogo com a cultura grega daquele tempo, cai por terra de imediato, como já vimos, toda preclusão quanto ao eros. Ele é usado com frequência, nos autores gregos, como sinônimo de ágape, e empregado para indicar o amor de Deus pelo homem, como também o amor do homem por Deus, o amor pelas virtudes e por tudo o que é belo. Basta, para nos convencermos disso, uma simples olhada no Léxico Patrístico Grego, de Lampe [8]. O sistema de Nygren e Barth, portanto, foi construído sobre uma falsa aplicação do assim chamado argumento “ex silentio”.

4. Um eros para os consagrados

O resgate do eros ajuda acima de tudo os enamorados humanos e os esposos cristãos, mostrando a beleza e a dignidade do amor que os une. Ajuda os jovens a experimentar o fascínio do outro sexo não como coisa turva, a ser vivida às costas de Deus, mas, ao contrário, como um dom do Criador para a sua alegria, desde que vivido na ordem querida por Ele. Na sua encíclica, o papa acena ainda para esta função positiva do eros sobre o amor humano quando fala do caminho de purificação do eros, que leva da atração momentânea ao “para sempre” do matrimônio (4-5).

Mas o resgate do eros deve ajudar também a nós, consagrados, homens e mulheres. Eu acenei no início ao perigo que as almas religiosas correm de um amor frio, que não desce da mente para o coração. Um sol de inverno, que ilumina, mas não aquece. Se eros significa ímpeto, desejo, atração, não devemos ter medo dos sentimentos, nem muito menos desprezá-los e reprimi-los. Quando se trata do amor de Deus, escreveu Guilherme de Saint Thierry, o sentimento de afeto (affectio) é também graça; a natureza não pode infundir um sentimento assim [9].

Os salmos estão cheios desse anseio do coração por Deus: “A ti, Senhor, eu elevo a minh’alma...”. “A minh’alma tem sede de Deus, do Deus vivente”. “Preste atenção”, diz o autor da Nuvem do não conhecimento, “a este maravilhoso trabalho da graça na tua alma. Ele não é senão impulso imprevisto, que surge sem aviso e aponta diretamente para Deus, como uma centelha que se desencarcera do fogo... Golpeie essa nuvem do não conhecimento com a flecha afiada do desejo de amor e não esmoreça, ocorra o que ocorrer” [10]. É suficiente, para tanto, um pensamento, um movimento do coração, uma jaculatória.

Mas tudo isso não nos é bastante e Deus o sabe melhor que nós. Somos criaturas, vivemos no tempo e num corpo; precisamos de uma tela na qual projetar o nosso amor que não seja apenas “a nuvem do não conhecimento”, o véu de escuridão por trás do qual se oculta o Deus que ninguém nunca viu e que habita numa luz inacessível...

A resposta que se dá a esta interrogação nós conhecemos bem: por isso mesmo Deus nos deu o próximo para amarmos. “Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor se torna perfeito em nós. Quem não ama o próprio irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4, 12-20). Mas devemos ficar atentos para não saltar uma fase decisiva: antes do irmão que vemos, há outro que também vemos e tocamos: o Deus feito carne, Jesus Cristo! Entre Deus e o próximo existe o Verbo feito carne, que reuniu os dois extremos numa só pessoa. É nele que o próprio amor ao próximo encontra o seu fundamento: “Foi a mim que o fizestes”.

O que significa tudo isto pelo amor de Deus? Que o objeto primário no nosso eros, da nossa busca, desejo, atração, paixão, deve ser o Cristo. “Ao Salvador é pré-ordenado o amor humano desde o princípio, como ao seu modelo e fim, como uma urna tão grande e tão ampla que pudesse acolher a Deus [...] O desejo da alma é unicamente de Cristo. Aqui é o lugar do seu repouso, porque só Ele é o bem, a verdade e tudo quanto inspira amor”. Não quer dizer restringir o horizonte do amor cristão de Deus a Cristo; quer dizer amar a Deus do jeito que Ele quer ser amado. “O Pai vos ama porque vós me amais” (Jo 16, 27). Não se trata de um amor mediato, quase por procuração, por meio do qual quem ama Jesus “é como se” amasse o Pai. Não. Jesus é um mediador imediato; amando a Ele, amamos, ipso facto, o Pai. “Quem me vê, vê o Pai”; quem me ama, ama o Pai.

É verdade que nem mesmo a Cristo se vê, mas ele existe. Ressuscitou, vive, está conosco, de modo mais real do que o mais apaixonado esposo está com a esposa. Eis o ponto crucial: pensar em Cristo não como uma pessoa do passado, mas como o Senhor ressuscitado e vivente, com quem eu posso falar, a quem eu posso beijar se quiser, certo de que o meu beijo não termina na estampa ou no lenho de um crucifixo, mas num rosto e em lábios de carne viva (ainda que espiritualizada), felizes de receber o meu beijo.

A beleza e a plenitude da vida consagrada depende da qualidade do nosso amor por Cristo. É só o que pode nos defender dos altos e baixos do coração. Jesus é o homem perfeito; nele se encontram, em grau infinitamente superior, todas aquelas qualidades e atenções que um homem procura numa mulher e uma mulher no homem. O amor dele não nos elimina necessariamente a sedução das criaturas e, em particular, a atração do outro sexo (ela faz parte da nossa natureza, que Ele criou e não quer destruir). Mas nos dá a força para vencer essas atrações com uma atração mais forte. “Casto”, escreve São João Clímaco, “é quem afasta o eros com o Eros” [11].

Será que tudo isso destrói a gratuidade do ágape, pretendendo dar a Deus alguma coisa em troca do seu coração? Anula a graça? De jeito nenhum. Antes, a exalta. O que, afinal, neste mundo, damos a Deus se não o que recebemos dele? “Nós amamos porque Ele nos amou primeiro” (1 Jo 4, 19). O amor que damos a Cristo é o seu próprio amor por nós, que devolvemos a Ele, como o eco nos devolve a nossa voz.

Onde está então a novidade e a beleza deste amor que chamamos eros? O eco reenvia para Deus o seu próprio amor, mas enriquecido, colorido e perfumado com a nossa liberdade. E é tudo o que Ele quer. A nossa liberdade lhe paga tudo. E não só isto, mas, coisa inaudita, escreve Cabasilas, “recebendo de nós o dom do amor em troca de tudo o que Ele nos deu, Ele ainda se reputa nosso devedor” [12]. A tese que contrapõe eros e ágape se baseia em outra conhecida contraposição: a contraposição entre graça e liberdade, e, mais ainda, na negação da liberdade no homem decaído.

Eu procurei imaginar, Veneráveis padres e irmãos, o que diria Cristo ressuscitado se, como fazia na vida terrena, quando entrava aos sábados numa sinagoga, viesse agora sentar-se aqui, no meu lugar, e nos explicasse em pessoa qual é o amor que Ele deseja de nós. Quero compartilhar com vocês, com simplicidade, o que eu penso que Ele diria. Pode nos servir para o nosso exame de consciência sobre o amor:

O amor ardente:

É me colocares sempre em primeiro lugar.

É procurares me alegrar em todo momento.

É confrontares teus desejos com o meu desejo.

É viveres como meu amigo, confidente, esposo, e seres feliz assim.

É te inquietares ao pensamento de ficar um pouco longe de mim.

É seres repleto de felicidade quando estou contigo.

É estares disposto a grandes sacrifícios para nunca me perder.

É preferires viver pobre e desconhecido comigo a rico e famoso sem mim.

É falares comigo como ao amigo mais amado em todo momento possível.

É te confiares a mim olhando para o teu futuro.

É desejares perder-te em mim como meta do teu existir.

Se vocês acharem, como eu acho, que estamos muito longe dessa situação, não nos desencorajemos. Temos alguém que pode nos ajudar a chegar lá se pedirmos sua ajuda. Repitamos com fé ao Espírito Santo: Veni, Sancte Spiritus, reple tuorum corda fidelium et tui amoris in eis ignem accende: Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor.


Notas:

1 Pseudo Dionísio Areopagita, Os nomes divinos, IV,12 (PG, 3, 709 em diante.)

2 S. Agostinho, Confissões I, 1.

3 Comentário ao evangelho de João, 26, 4-5.

4 Cf. S. Bernardo, De diligendo Deo, IX,26 –X,27.

5 S. Tomás de Aquino, Comentário à Carta aos Romanos, cap. V, liç.1, n. 392-293; cf. S. Agostinho, Comentário à Primeira Carta de João, 9, 9.

6 K. Barth, Dogmática eclesial, IV, 2, 832-852.

7 O sentido que os primeiros cristãos davam à palavra eros se deduz do famoso texto de S. Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, 7,2: “O meu amor (eros) foi crucificado e não há em mim fogo de paixão…não me atraem o nutrir corrupção e os prazeres desta vida”. “O meu eros” não indica aqui Jesus crucificado, mas “o amor de mim mesmo” , o apego aos prazeres terrenos, na linha do paulino “Fui crucificado com Cristo, não sou mais eu que vivo” (Gal 2, 19 s.).

8 Cf. G.W.H. Lampe, A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1961, pp.550.

9 Guilherme de St. Thierry, Meditações, XII, 29 (SCh 324, p. 210).

10 Anônimo, A nuvem do não conhecimento, trad. Italiana, Ed. Áncora, Milão, 1981, pp. 136.140.

11 S. João Clímaco, A escada do paraíso, XV,98 (PG 88,880).

12 N. Cabasilas, Vida em Cristo, VI, 4 .


Fonte: ZENIT
CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 25 de março de 2011
[Traduzido do original em italiano por ZENIT]

sexta-feira, 25 de março de 2011

O encontro entre uma samaritana e um judeu

Lopes, Mesters e Orofino


Os samaritanos eram desprezados pelos judeus. Este desprezo vinha de longe, desde o século VIII antes de Cristo (2Rs 17,24-41), e transparece em alguns livros do Antigo Testamento. O livro do Eclesiástico, por exemplo, fala de um ‘povo estúpido que mora em Siquém, que nem sequer é nação" (Eclo 50,25-26). Muitos judeus da Galiléia, quando viajavam para Jerusalém, não passavam pela Samaria. O Evangelho de João mostra Jesus fazendo o contrário, passando pela Samaria e acolhendo os samaritanos. Por causa disso, era criticado pelos judeus, que o xingavam de "samaritano, possesso de demônio" (Jo 8,48). Depois da ressurreição, os seguidores e as seguidoras de Jesus, superaram seus preconceitos e anunciaram a Boa Nova aos samaritanos (At 8,4-8). Nas ‘comunidades do Discípulo Amado' havia muitos samaritanos.

1. João 4,1-6: O palco onde se realiza o diálogo entre Jesus e a samaritana

Quando Jesus percebe que os fariseus poderiam irritar-se com a sua atividade batismal, ele sai da Judeia e volta para a Galileia. Deste modo, evita uma briga religiosa (Jo 4,1-3). Voltando para a Galileia, Jesus passa pela Samaria. Por volta do meio-dia, ele chega junto do poço de Jacó. Cansado da viagem, senta perto do poço, onde a samaritana vai encontrá-lo. O poço era o lugar tradicional de encontros e de conversas. Hoje, seria a praça, o bar, a rodoviária, o shopping... E lá, perto do poço, que começa a longa e difícil conversa que foi de muito proveito para ambos.

2. João 4,7-15: Primeira parte do diálogo: a conversa em torno da água ou do trabalho

Água, corda, balde e poço eram os elementos que marcavam o mundo do trabalho da samaritana. É Jesus que toma a iniciativa do diálogo. Ele parte da necessidade bem concreta da sua própria sede e diz: "Dá-me de beber!" Pela pergunta a samaritana descobre que Jesus precisa dela para ele poder resolver o problema da sua sede. Assim, Jesus desperta nela o gosto de ajudar e de servir. Desde o começo da conversa, Jesus usa a palavra água nos dois sentidos. No sentido normal: água que mata a sede; e no sentido simbólico; água como fonte de vida e como dom do Espírito Santo, prometido no Antigo Testamento (Zc 14,8; Ez 47,1-12). Desde o começo da conversa, a samaritana entende a palavra água no seu sentido normal de água que mata a sede do corpo. Existe uma tensão entre os dois. Jesus tenta ajudar a samaritana a passar para um outro nível de entendimento. A samaritana, por sua vez, procura levar Jesus a entender as coisas conforme o sentido que elas tem no dia-a-dia. Por isso, por esta porta da água ou do trabalho, Jesus não conseguiu comunicar-se com ela e a conversa não avançou.

3. João 4,16-18: Segunda parte do diálogo: a conversa em torno do marido ou da família

Jesus tenta estabelecer contato por uma outra porta. Ele diz: "Vá buscar seu marido!" É a porta da família. Mas também aqui ele encontra a porta fechada. A samaritana responde secamente: "Não tenho marido!" Jesus diz: "Você falou bem. Você teve cinco maridos e o que tem agora não é o seu marido!" Os cinco maridos evocam simbolicamente os cinco ídolos do povo samaritano (2 Rs 17,29-30). Aquele com quem ela convive agora, ou seja, o sexto a que Jesus alude, talvez seja João Batista, venerado como messias, ou a fé diferente dos samaritanos em Javé. O Quarto Evangelho sugere discretamente que o sétimo é o próprio Jesus, o messias, o esposo que o povo estava esperando.

4. João 4,19-24: Terceira parte do diálogo: a conversa em torno do lugar da adoração

Finalmente, por causa da resposta recebida, a samaritana identifica Jesus e diz: ‘Vejo que o senhor é um profeta". Neste momento, ela se situa na conversa e começa a tomar a iniciativa. Muda o rumo do diálogo e puxa o assunto para a religião: onde adorar a Deus? Lá em Jerusalém ou aqui no Monte Garizim? Os samaritanos tinham construído um templo no Monte Garizim que ficava perto do poço onde eles estavam conversando. Jesus entra pela porta que a mulher abriu. Primeiro, ele relativiza o lugar do culto: nem aqui nem lá! Neste ponto, os judeus não têm nenhum privilégio. Em seguida, esclarece que tanto judeu como samaritano, ambos adoram a Deus. A diferença é que os judeus adoram o que conhecem. Os samaritanos adoram o que (ainda) não conhecem, "porque a salvação vem dos judeus", mas não se restringe a eles. E Jesus termina dizendo que chegará o tempo em que se poderá adorar a Deus em qualquer lugar, contanto que seja "em espírito e verdade".

5. João 4,25-26: A revelação: "O Messias sou eu que estou conversando contigo!”

A samaritana muda novamente o rumo da conversa e puxa o assunto para a esperança messiânica do seu povo: "Sei que vem um Messias. Quando ele vier, vai nos mostrar todas essas coisas!" Novamente, Jesus aceita a mudança do rumo da conversa, entra pela porta que a samaritana abriu e se apresenta: o Messias "sou eu que estou conversando contigo!" A esta mulher, excluída e herética para os judeus da época, Jesus revelou, por primeiro, a sua condição de Messias! Enquanto ele mesmo tomava a iniciativa, a conversa não avançava. Ela só avançou e atingiu o seu objetivo a partir do momento em que a samaritana se situou e começou a tomar a iniciativa. Será que nós temos a mesma coragem de deixar ao outro a iniciativa, o rumo da conversa?

6. João 4,27-30: A transformação que o diálogo realiza na samaritana

Os discípulos tinham ido ao povoado comprar alimento (Jo 4,8). Retornando, encontram Jesus conversando com uma mulher. Estranharam, mas não disseram nada. Então, a samaritana largou o balde perto do poço e voltou sem água para o povoado. Já não precisava da água do poço de Jacó, da antiga Lei. Ela havia encontrado a fonte da água que brotava dentro dela para a vida eterna (Jo 4,14). Chegando no povoado, ela anuncia Jesus: "Venham ver um homem que me disse tudo o que eu fiz! Será que ele é o Messias?" O resultado deste difícil diálogo parece muito reduzido. Jesus só conseguiu provocar uma pergunta na mulher: ‘Será que ele é o Messias?" Talvez seja este o resultado mais positivo que se possa imaginar! Jesus não dá respostas. Ele levanta perguntas que levam a pessoa a refletir sobre o sentido da vida.

7. João 4,31-38: A transformação que o diálogo realiza em Jesus

Mesmo correndo o risco de não obter nenhum resultado, Jesus não se impôs nem condenou a mulher, mas respeitou-a profundamente. Durante a conversa, ele não se fechou dentro da sua religião nem dentro da sua raça, mas se orientava por aquilo que ele mesmo ia aprendendo da própria samaritana. No fim, esqueceu até da comida que os discípulos tinham trazido, pois prestava atenção ao que o Pai lhe tinha a dizer através da conversa com a samaritana: ‘Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra!" (Jo 4,34). Jesus lê os fatos com outros olhos. Para os judeus, os samaritanos eram um povo a ser desprezado. Para Jesus, eles são um campo fértil, pronto para a colheita (Jo 4,35). Ele descobre que, na vida da samaritana, pessoa não judia e não praticante, existe o dom de Deus" (Jo 4,10). A Boa Nova de Deus existe na vida de todas as pessoas. Os discípulos e as discípulas não são os donos da Boa Nova. Devem ser servidores, instrumentos. Sua missão é ajudar as pessoas a descobrir o dom de Deus dentro das suas vidas.

O artigo aqui apresentado encontra-se no livro Raio-X da Vida de Carlos Mesters, Francisco Orofino e Mercedes Lopes - Sexta-feira, 25 de março de 2011
CEBI - Centro de Estudos Bíblicos