Em encontro com o
Celam, Francisco atacou o abuso de poder na Igreja, a mentalidade de
'príncipes' entre os cardeais, o carreirismo e a distância imposta pelos bispos
aos fiéis
Um ataque ao abuso de poder na Igreja, à
mentalidade de "príncipes" entre os cardeais, à inclusão de
ideologias sociais no Evangelho - tanto marxista como liberal - e uma denúncia
frontal contra o carreirismo e contra a distância imposta pelos bispos aos fiéis.
Em um duro e longo discurso, considerado o principal de seu pontificado até
agora, no encontro com o Comitê de Coordenação do Conselho Episcopal
Latino-Americano (Celam), o papa Francisco apelou por uma Igreja
"atual" e apresentou um raio X dos problemas da Igreja que, segundo
ele, estão impedindo seu crescimento e fazendo proliferar sua
"imaturidade".
Sem meias-palavras, Francisco alerta: a Igreja
está "atrasada" e mantém "estruturas caducas". Para ele,
chegou o momento de a Igreja entender que precisa se modernizar e deixar de
viver de tradições ou apenas de vender esperanças para o futuro. A ocasião
escolhida para apresentar seu "programa de governo" para tentar
reconstruir a Igreja foi a reunião que manteve com os cardeais
latino-americanos, neste domingo, no Rio. "Toda a projeção utópica (para o
futuro) ou restauracionista (para o passado) não é do espírito bom. Deus é real
e se manifesta no ‘hoje’", declarou. "O ‘hoje’ é o que mais se parece
com a eternidade; mais ainda: o ‘hoje’ é uma centelha de eternidade. No ‘hoje’,
se joga a vida eterna", insistiu.
"O que derruba as estruturas caducas, o
que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a missionariedade",
declarou, lembrando que isso "exige gerar a consciência de uma Igreja que
se organiza para servir a todos os batizados e homens de boa vontade".
"O discipulado-missionário é o caminho que Deus quer para a Igreja ‘hoje’”
.
Francisco, porém, ao apresentar essa estratégia
como forma de reconquistar fiéis e retomar a posição de influência da Igreja, alertou
justamente para vícios e tentações que a instituição atravessa e que precisa
abandonar para poder retomar sua credibilidade.
"A opção pela missionariedade do discípulo
sofrerá tentações", alertou. "É importante saber por onde entra o
espírito mau, para nos ajudar no discernimento. Não se trata de sair à caça de
demônios, mas simplesmente de lucidez e prudência evangélicas", disse.
Para ele, essas tentações ameaçam "deter e até fazer fracassar" a
ação pastoral.
Uma delas seria a "ideologização da mensagem
evangélica", numa primeira referência direta contra tendências que
ganharam força na América Latina nos anos 70 e que foram combatidas pelo
Vaticano com dureza. "Essa é uma tentação que se verificou na Igreja desde
o início e, em alguns momentos, foi muito forte", disse. Para o papa, uma
dessas ameaças de ideologização é o "reducionismo socializante". O
argentino, porém, faz questão de atacar não apenas a Teologia da Libertação,
mas também tendências liberais. "A tentação engloba os campos mais variados,
desde o liberalismo de mercado até a categorização marxista", declarou.
O resultado disso tudo, segundo o papa, é uma
Igreja com "falta de maturidade adulta e de liberdade cristã".
"Ou essa Igreja não cresce ou se abriga sob coberturas de ideologizações",
atacou.
Príncipes. A superação dessa crise, segundo o
papa, exigirá bispos com novas atitudes. Para ele, são pessoas que devem
"guiar", não comandar. "O perfil do bispo deve ser de pastores,
próximos das pessoas, homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como
liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e
austeridade de vida. Homens que não tenham ‘psicologia de príncipes’“, disse,
numa referência aos termos que são usados em Roma para descrever os cardeais.
"Homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja sem
viver na expectativa de outra", insistiu.
Francisco alertou que não está criando nada
novo ao pedir que os bispos se aproximem dos fiéis. Mas criticou abertamente a
Igreja latino-americana. "Na América Latina e no Caribe, existem pastorais
‘distantes’, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as
condutas, os procedimentos organizacionais... obviamente sem proximidade, sem
ternura, nem carinho. Há pastorais posicionadas com tal dose de distância que
são incapazes de conseguir o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com
os irmãos", disse.
Leia a íntegra do discurso no encontro com o
Comitê de Coordenação do Celam no Centro de Estudos do Sumaré:
Agradeço ao Senhor por esta oportunidade de
poder falar com vocês, Irmãos Bispos responsáveis do Celam no quadriênio
2011-2015. Há 57 anos que o Celam serve as 22 Conferências Episcopais da
América Latina e do Caribe, colaborando solidária e subsidiariamente para
promover, incentivar e dinamizar a colegialidade episcopal e a comunhão entre
as Igrejas da região e seus pastores.
Como vocês, também eu sou testemunha do forte
impulso do Espírito na V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do
Caribe, em Aparecida no mês de maio de 2007, que continua animando os trabalhos
do Celam para a anelada renovação das Igrejas particulares. Em boa parte delas,
essa renovação já está em andamento. Gostaria de centrar esta conversação no
patrimônio herdado daquele encontro fraterno e que todos batizamos como Missão
Continental.
Características
peculiares de Aparecida
Existem quatro características típicas da
referida V Conferência. Constituem como que quatro colunas do desenvolvimento
de Aparecida que lhe dão a sua originalidade.
1) Início sem documento
Medelín, Puebla e Santo Domingo começaram os
seus trabalhos com um caminho preparatório que culminou em uma espécie de
Instrumentum laboris, com base no qual se desenrolou a discussão, a reflexão e
a aprovação do documento final. Em vez disso, Aparecida promoveu a participação
das Igrejas particulares como caminho de preparação que culminou em um
documento de síntese. Este documento, embora tenha sido ponto de referência
durante a V Conferência Geral, não foi assumido como documento de partida. O
trabalho inicial foi pôr em comum as preocupações dos pastores perante a
mudança de época e a necessidade de recuperar a vida de discípulo e missionário
com que Cristo fundou a Igreja.
2) Ambiente de oração com o Povo de Deus
É importante lembrar o ambiente de oração
gerado pela partilha diária da Eucaristia e de outros momentos litúrgicos,
tendo sido sempre acompanhados pelo Povo de Deus. Além disso, realizando-se os
trabalhos na cripta do Santuário, a “música de fundo” que os acompanhava era constituída
pelos cânticos e as orações dos fiéis.
3) Documento que se prolonga em compromisso,
com a Missão Continental
Neste contexto de oração e vivência de fé,
surgiu o desejo de um novo Pentecostes para a Igreja e o compromisso da Missão
Continental. Aparecida não termina com um documento, mas prolonga-se na Missão
Continental.
4) A presença de Nossa Senhora, Mãe da América
É a primeira Conferência do Episcopado da
América Latina e do Caribe que se realiza em um Santuário mariano.
Dimensões da Missão Continental
A Missão Continental está projetada em duas
dimensões: programática e paradigmática. A missão programática, como o próprio
nome indica, consiste na realização de atos de índole missionária. A missão
paradigmática, por sua vez, implica colocar em chave missionária a atividade
habitual das Igrejas particulares. Em consequência disso, evidentemente,
verifica-se toda uma dinâmica de reforma das estruturas eclesiais. A “mudança
de estruturas” (de caducas a novas) não é fruto de um estudo de organização do
organograma funcional eclesiástico, de que resultaria uma reorganização
estática, mas é consequência da dinâmica da missão. O que derruba as estruturas
caducas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a
missionariedade. Daqui a importância da missão paradigmática.
A Missão Continental, tanto programática como
paradigmática, exige gerar a consciência de uma Igreja que se organiza para
servir a todos os batizados e homens de boa vontade. O discípulo de Cristo não
é uma pessoa isolada em uma espiritualidade intimista, mas uma pessoa em
comunidade para se dar aos outros. Portanto, a Missão Continental implica
pertença eclesial.
Uma posição como esta, que começa pelo
discipulado missionário e implica entender a identidade do cristão como pertença
eclesial, pede que explicitemos quais são os desafios vigentes da
missionariedade discipular. Me limito a assinalar dois: a renovação interna da
Igreja e o diálogo com o mundo atual.
Renovação interna da
Igreja
Aparecida propôs como necessária a Conversão
Pastoral. Esta conversão implica acreditar na Boa Nova, acreditar em Jesus
Cristo portador do Reino de Deus, em sua irrupção no mundo, em sua presença
vitoriosa sobre o mal; acreditar na assistência e guia do Espírito Santo;
acreditar na Igreja, Corpo de Cristo e prolongamento do dinamismo da
Encarnação.
Neste sentido, é necessário que nos
interroguemos, como pastores, sobre o andamento das Igrejas a que presidimos.
Estas perguntas servem de guia para examinar o
estado das dioceses quanto à adoção do espírito de Aparecida, e são perguntas
que é conveniente pôr-nos, muitas vezes, como exame de consciência.
1. Procuramos que o nosso trabalho e o
de nossos presbíteros seja mais pastoral que administrativo? Quem é o principal
beneficiário do trabalho eclesial, a Igreja como organização ou o Povo de Deus
na sua totalidade?
2. Superamos a tentação de tratar de
forma reativa os problemas complexos que surgem? Criamos um hábito proativo?
Promovemos espaços e ocasiões para manifestar a misericórdia de Deus? Estamos
conscientes da responsabilidade de repensar as atitudes pastorais e o
funcionamento das estruturas eclesiais, buscando o bem dos fiéis e da
sociedade?
3. Na prática, fazemos os fiéis leigos
participantes da missão? Oferecemos a palavra de Deus e os sacramentos com
consciência e convicção claras de que o Espírito se manifesta neles?
4. Temos como critério habitual o
discernimento pastoral, servindo-nos dos Conselhos Diocesanos? Tanto estes como
os Conselhos paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços reais
para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastoral? O
bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos muito
atrasados nisso.
5. Nós, Pastores Bispos e Presbíteros,
temos consciência e convicção da missão dos fiéis e lhes damos a liberdade para
irem discernindo, de acordo com o seu processo de discípulos, a missão que o
Senhor lhes confia? Apoiamo-los e acompanhamos, superando qualquer tentação de
manipulação ou indevida submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos
interpelar pela busca do bem da Igreja e da sua
Missão no mundo?
6. Os agentes de pastoral e os fiéis
em geral sentem-se parte da Igreja, identificam-se com ela e aproximam-na dos
batizados indiferentes e afastados?
Como se pode ver, aqui estão em jogo atitudes.
A Conversão Pastoral diz respeito, principalmente, às atitudes e a uma reforma
de vida. Uma mudança de atitudes é necessariamente dinâmica: “entra em
processo” e só é possível moderá-lo acompanhando-o e discernindo-o. É
importante ter sempre presente que a bússola, para não se perder nesse caminho,
é a identidade católica concebida como pertença eclesial.
Diálogo com o mundo
atual
Faz-nos bem lembrar estas palavras do Concílio
Vaticano II: As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e atribulados, são também alegrias
e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo. Aqui reside o
fundamento do diálogo com o mundo atual.
A resposta às questões existenciais do homem de
hoje, especialmente das novas gerações, atendendo à sua linguagem, entranha uma
mudança fecunda que devemos realizar com a ajuda do Evangelho, do Magistério e
da Doutrina Social da Igreja. Os cenários e areópagos são os mais variados. Por
exemplo, em uma mesma cidade, existem vários imaginários coletivos que
configuram “diferentes cidades”. Se continuarmos apenas com os parâmetros da
“cultura de sempre”, fundamentalmente uma cultura de base rural, o resultado
acabará anulando a força do Espírito Santo. Deus está em toda a parte: há que
saber descobri-lo para poder anunciá-lo no idioma dessa cultura; e cada
realidade, cada idioma tem um ritmo diferente.
Algumas tentações
contra o discipulado missionário
A opção pela missionariedade do discípulo
sofrerá tentações. É importante saber por onde entra o espírito mau, para nos
ajudar no discernimento. Não se trata de sair à caça de demônios, mas
simplesmente de lucidez e prudência evangélicas. Limito-me a mencionar algumas
atitudes que configuram uma Igreja “tentada”. Trata-se de conhecer determinadas
propostas atuais que podem mimetizar-se em a dinâmica do discipulado
missionário e deter, até fazê-lo fracassar, o processo de Conversão Pastoral.
1. A ideologização da mensagem
evangélica. É uma tentação que se verificou na Igreja desde o início: procurar
uma hermenêutica de interpretação evangélica fora da própria mensagem do
Evangelho e fora da Igreja.
Um exemplo: a dado momento, Aparecida sofreu
essa tentação sob a forma de assepsia. Foi usado, e está bem, o método de “ver,
julgar, agir”. A tentação se encontraria em optar por um "ver"
totalmente asséptico, um “ver” neutro, o que não é viável. O ver está sempre
condicionado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica. Então a pergunta
era: Com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o olhar de
discípulo. Assim se entendem os números 20 a 32. Existem outras maneiras de
ideologização da mensagem e, atualmente, aparecem na América Latina e no Caribe
propostas desta índole. Menciono apenas algumas:
a) O reducionismo socializante. É a ideologização
mais fácil de descobrir. Em alguns momentos, foi muito forte. Trata-se de uma
pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências
sociais. Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo de mercado até a
categorização marxista.
b) A ideologização psicológica. Trata-se de uma
hermenêutica elitista que, em última análise, reduz o “encontro com Jesus
Cristo” e seu sucessivo desenvolvimento a uma dinâmica de autoconhecimento.
Costuma verificar-se principalmente em cursos
de espiritualidade, retiros espirituais, etc. Acaba por resultar numa posição
imanente autorreferencial. Não tem sabor de transcendência, nem portanto de
missionariedade.
c) A proposta gnóstica. Muito ligada à tentação
anterior. Costuma ocorrer em grupos de elites com uma proposta de
espiritualidade superior, bastante desencarnada, que acaba por desembocar em
posições pastorais de “quaestiones disputatae”. Foi o primeiro desvio da comunidade
primitiva e reaparece, ao longo da história da Igreja, em edições corrigidas e
renovadas. Vulgarmente são denominados “católicos iluminados” (por serem
atualmente herdeiros do Iluminismo).
d) A proposta pelagiana. Aparece fundamentalmente
sob a forma de restauracionismo. Perante os males da Igreja, busca-se uma
solução apenas na disciplina, na restauração de condutas e formas superadas
que, mesmo culturalmente, não possuem capacidade significativa. Na América
Latina, costuma verificar-se em pequenos grupos, em algumas novas Congregações
Religiosas, em tendências para a “segurança” doutrinal ou disciplinar.
Fundamentalmente é estática, embora possa prometer uma dinâmica para dentro:
regride. Procura “recuperar” o passado perdido.
2. O funcionalismo. A sua ação na
Igreja é paralisante. Mais do que com a rota, se entusiasma com o “roteiro”. A
concepção funcionalista não tolera o mistério, aposta na eficácia. Reduz a
realidade da Igreja à estrutura de uma ONG. O que vale é o resultado palpável e
as estatísticas. A partir disso, chega-se a todas as modalidades empresariais
de Igreja. Constitui uma espécie de “teologia da prosperidade” no organograma
da pastoral.
3. O clericalismo é também uma
tentação muito atual na América Latina. Curiosamente, na maioria dos casos,
trata-se de uma cumplicidade viciosa: o sacerdote clericaliza e o leigo lhe
pede, por favor, que o clericalize, porque, no fundo, lhe resulta mais cômodo.
O fenômeno do clericalismo explica, em grande parte, a falta de maturidade
adulta e de liberdade cristã em boa parte do laicato da América Latina: ou não
cresce (a maioria), ou se abriga sob coberturas de ideologizações como as
indicadas, ou ainda em pertenças parciais e limitadas. Em nossas terras, existe
uma forma de liberdade laical através de experiências de povo: o católico como
povo. Aqui vê-se uma maior autonomia, geralmente sadia, que se expressa
fundamentalmente na piedade popular. O capítulo de Aparecida sobre a piedade
popular descreve, em profundidade, essa dimensão. A proposta dos grupos
bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos Conselhos pastorais está na
linha de superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade
laical.
Poderíamos continuar descrevendo outras
tentações contra o discipulado missionário, mas acho que estas são as mais
importantes e com maior força neste momento da América Latina e do Caribe.
Algumas orientações
eclesiológicas
1. O discipulado-missionário que
Aparecida propôs às Igrejas da América Latina e do Caribe é o caminho que Deus
quer para “hoje”. Toda a projeção utópica (para o futuro) ou restauracionista
(para o passado) não é do espírito bom. Deus é real e se manifesta no “hoje”. A
sua presença, no passado, se nos oferece como “memória” da saga de salvação
realizada quer em seu povo quer em cada um de nós; no futuro, se nos oferece
como “promessa” e esperança. No passado, Deus esteve lá e deixou sua marca: a
memória nos ajuda encontrá-lo; no futuro, é apenas promessa... e não está nos
mil e um “futuríveis”. O “hoje” é o que mais se parece com a eternidade; mais
ainda: o “hoje” é uma centelha de eternidade. No “hoje”, se joga a vida eterna.
O discipulado missionário é vocação: chamada e
convite. Acontece em um “hoje”, mas “em tensão”. Não existe o discipulado
missionário estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo; a
sua imanência está em tensão para a transcendência do discipulado e para a
transcendência da missão. Não admite a autorreferencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às
pessoas a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito
projetado para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e
o encontro com os homens que esperam o anúncio.
Por isso, gosto de dizer que a posição do
discípulo missionário não é uma posição de centro, mas de periferias: vive em
tensão para as periferias... Incluindo as da eternidade no encontro com Jesus
Cristo. No anúncio evangélico, falar de “periferias existenciais” descentraliza
e, habitualmente, temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um
descentrado: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é
enviado para as periferias existenciais.
2. A Igreja é instituição, mas, quando
se erige em “centro”, se funcionaliza e, pouco a pouco, se transforma em uma
ONG. Então, a Igreja pretende ter luz própria e deixa de ser aquele “mysterium
lunae” de que nos falavam os Santos Padres.
Torna-se cada vez mais autorreferencial, e se
enfraquece a sua necessidade de ser missionária. De “Instituição” se transforma
em “Obra”. Deixa de ser Esposa, para acabar sendo Administradora; de Servidora
se transforma em “Controladora”. Aparecida quer uma Igreja Esposa, Mãe,
Servidora, facilitadora da fé e não controladora da fé.
3. Em Aparecida, verificam-se de forma
relevante duas categorias pastorais, que surgem da própria originalidade do
Evangelho e nos podem também servir de orientação para avaliar o modo como
vivemos eclesialmente o discipulado missionário: a proximidade e o encontro.
Nenhuma das duas é nova, antes configuram a maneira como Deus se revelou na
história. É o “Deus próximo” do seu povo, proximidade que chega ao máximo
quando Ele encarna. É o Deus que sai ao encontro do seu povo. Na América Latina
e no Caribe, existem pastorais “distantes”, pastorais disciplinares que
privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais... Obviamente
sem proximidade, sem ternura, nem carinho.
Ignora-se a "revolução da ternura",
que provocou a encarnação do Verbo. Há pastorais posicionadas com tal dose de
distância que são incapazes de conseguir o encontro: encontro com Jesus Cristo,
encontro com os irmãos. Este tipo de pastoral pode, no máximo, prometer uma
dimensão de proselitismo, mas nunca chegam a conseguir inserção nem pertença
eclesial. A proximidade cria comunhão e pertença, dá lugar ao encontro. A
proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro. Uma pedra de
toque para aferir a proximidade e a capacidade de encontro de uma pastoral é a
homilia. A pastoral é, em última instância, o exercício de maternidade da
Igreja. Como são as nossas homilias? Estão próximas do exemplo de Nosso Senhor,
que “falava como quem tem autoridade”, ou são meramente prescritivas,
distantes, abstratas?
4. Quem guia a pastoral, a Missão
Continental (seja programática seja paradigmática), é o bispo. Ele deve guiar,
que não é o mesmo que comandar. Além de assinalar as grandes figuras do
episcopado latino-americano que todos nós conhecemos, gostaria de acrescentar
aqui algumas linhas sobre o perfil do Bispo, que já disse aos Núncios na
reunião que tivemos em Roma. Os bispos devem ser pastores, próximos das
pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão: pacientes e misericordiosos.
Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do
Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens
que não tenham “psicologia de príncipes”. Homens que não sejam ambiciosos e que
sejam esposos de uma Igreja sem viver na expectativa de outra. É o fenômeno dos
bispos polígamos. Estão casados com uma, mas esperando ver quando terão a
promoção. Homens capazes de vigiar sobre o rebanho que lhes foi confiado e
cuidando de tudo aquilo que o mantém unido: vigiar sobre o seu povo, atento a
eventuais perigos que o ameacem, mas, sobretudo para cuidar da esperança: que
haja sol e luz nos corações. Homens capazes de sustentar com amor e paciência
os passos de Deus em seu povo. E o lugar onde o bispo pode estar com o seu povo
é triplo: ou à frente para indicar o caminho, ou no meio para mantê-lo unido e
neutralizar as debandadas, ou então atrás para evitar que alguém se desgarre,
mas também, e fundamentalmente, porque o próprio rebanho tem o seu olfato para
encontrar novos caminhos.
Não quero juntar mais detalhes sobre a pessoa
do bispo, mas simplesmente acrescentar, incluindo-me a mim mesmo nesta
afirmação, que estamos um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica.
Convém que nos ajudemos um pouco mais a dar os passos que o Senhor quer que
cumpramos neste “hoje” da América Latina e do Caribe. E seria bom começar por
aqui.
Agradeço-lhes a paciência de me ouvirem.
Desculpem a desordem do discurso e lhes peço, por favor, para tomarmos a sério
a nossa vocação de servidores do povo santo e fiel de Deus, porque é nisso que
se exerce e mostra a autoridade: na capacidade de serviço. Muito obrigado!
28 de julho de 2013
Jamil Chade - O Estado de S. Paulo