quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

DIACONADO PERMANENTE EM PORTUGAL ASSINALA 25 ANOS

Apoio da família é essencial para um ministério chamado a retomar as suas características originais
Aos utentes que passam pela consulta de cardiologia, Luís Brízida pergunta pela saúde do coração. Mas interiormente faz um questionamento que só ele escuta: “Em que é que poderei ajudar também no coração espiritual?”.
O chamamento ao diaconado permanente que Deus e a Igreja dirigiram a este médico nasceu do contacto com os doentes. O cardiologista recorda-se de “olhar para as pessoas e vê-las, por vezes, completamente perdidas perante Cristo”.
Foi a 8 de Dezembro de 1984 que a diocese de Setúbal iniciou um caminho que é hoje abraçado por muitos católicos e respectivas famílias.
Da transição à estabilidade
O serviço às mesas das refeições – que evoluiu para o que atualmente é designado de atividade sócio-caritativa – caracterizou a instituição do diaconado, ainda na primitiva comunidade cristã de Jerusalém.
Com a passagem do tempo, a Igreja passou a considerar o ministério como uma etapa prévia à recepção da ordenação presbiteral, tornando-o transitório.
O Concílio Vaticano II, terminado em 1965, restaurou o caráter permanente do primeiro dos três graus do sacramento da Ordem. A novidade chegaria à Igreja portuguesa dezenove anos mais tarde.
Primeiro diácono permanente em Portugal
Diaconado Permanente: um percurso com 25 anos em Portugal Inácio da Silva foi o primeiro diácono permanente a ser ordenado em Portugal, precisamente na solenidade da Imaculada Conceição. Tudo começa em 1963, com uma notícia sobre a restauração do ministério. O assunto voltou a ganhar vida muitos anos depois, quando o bispo da diocese de Setúbal visita a paróquia onde trabalhava. “Vá pensando nisso”, desafiou D. Manuel Martins.
O convite ficou em “banho-maria”. Até que um dia recebe uma carta do prelado, perguntando “se estava interessado” em tornar-se diácono permanente. Após a aceitação, seguiu-se a preparação, durante três anos. O pároco da Cova da Piedade, onde Inácio da Silva exerce o seu ministério, sublinha que o diaconado “não é para suprir a falta de padres, mas para dar seguimento a uma tradição que já é apostólica”. “Hoje, a Igreja tem que apostar no testemunho”, observa o Pe. Ricardo Gameiro.
Evangelização da cultura
Ao olhar para as tarefas desempenhadas pelos diáconos, quais são os traços mais relevantes que as comunidades apreendem dos dons que lhes foram transmitidos e da missão que lhes foi confiada?
O coordenador da seleção e formação dos candidatos ao diaconado permanente no Patriarcado de Lisboa, Pe. José Miguel, defende que o ministério manifesta “de forma bem concreta, através do serviço, aquilo que é próprio de toda a Igreja” – ou seja, “a configuração a Jesus Cristo, que veio para servir e não para ser servido”.
“Da parte do senhor Patriarca – continua o vice-reitor do Seminário dos Olivais – há a intuição muito importante de acentuar o papel do diácono na evangelização da cultura, uma vez que ele está inserido. Por outro lado, o ministério deve salientar o serviço da caridade, “e não ficar apenas centrado na liturgia, onde a maior parte dos diáconos exerce o seu ministério”, assinala o Pe. José Miguel.
Família é essencial para o crescimento espiritual
O diaconado permanente, quando envolve homens casados, passa também pelas suas esposas. São elas que acompanham de perto o percurso vocacional dos maridos, e é delas que depende, em grande medida, o seu crescimento espiritual.
“Inicialmente o projeto não me agradou, apesar de eu ser católica praticante”, conta Laura Brízida. “Se eu já tenho pouco tempo com o meu marido, porque a sua profissão exige muitas ausências, então vou ficar sem ele”, pensou.
Com o tempo, foi-se apercebendo de que não podia dizer não ao “chamamento de Deus”; mas “no início foi-me difícil dizer que sim”, admite a esposa do médico cardiologista Anabela Moutinho também passou por uma transformação na sua maneira de entender a vontade do marido. Começou por pensar que a decisão “era uma coisa só dele”; aos poucos, descobriu que precisava de se comprometer com o ministério a que o esposo é chamado.
“Nunca senti que o ser diácono fosse um estorvo para a minha família. Antes pelo contrário”, declara Inácio da Silva, vinte cinco anos após a sua ordenação.

sábado, 14 de novembro de 2009

VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM" DEI PRESULI DELLA CONFERENZA EPISCOPALE DEL BRASILE (REGIONE SUL 1)

Alle ore 11.30 di questa mattina, nella Sala del Concistoro, il Santo Padre Benedetto XVI incontra gli Ecc.mi Presuli della Conferenza Episcopale del Brasile (Regione Sul 1), ricevuti in questi giorni, in separate udienze, per la Visita "ad Limina Apostolorum" e rivolge loro il discorso che pubblichiamo di seguito:

• DISCORSO DEL SANTO PADRE

Senhor Cardeal,

Amados Arcebispos e Bispos do Brasil,

No meio da visita que estais cumprindo ad limina Apostolorum, vos reunistes hoje para subir à Casa do Sucessor de Pedro, que de braços abertos vos acolhe a todos vós, amados Pastores do Regional Sul 1, no Estado de São Paulo. Lá se encontra o importante centro de acolhimento e evangelização que é o Santuário de Nossa Senhora Aparecida, onde tive a alegria de estar em maio de 2007 para a inauguração da Quinta Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Faço votos por que a semente então lançada possa dar válidos frutos para o bem espiritual e também social das populações daquele promissor Continente, da querida Nação brasileira e do vosso Estado Federal. Elas «têm direito a uma vida plena, própria dos filhos de Deus, com condições mais humanas: livres da ameaças da fome e de toda forma de violência» [Discurso inaugural (13/V/2007), n. 4]. Uma vez mais, desejo agradecer tudo o que foi realizado com tão grande generosidade e renovar a minha cordial saudação a vós e às vossas dioceses, recordando de modo especial os sacerdotes, os consagrados e consagradas e os fiéis leigos que vos ajudam na obra de evangelização e animação cristã da sociedade.

O vosso povo abriga no coração um grande sentimento religioso e nobres tradições, enraizadas no cristianismo, que se exprimem em sentidas e genuínas manifestações religiosas e civis. Trata-se de um patrimônio rico de valores, que vós – como mostram os relatórios, e Dom Nelson referia na amável saudação que em vosso nome acaba de dirigir-me – procurais manter, defender, estender, aprofundar, vivificar. Ao regozijar-me vivamente com tudo isto, exorto-vos a prosseguir nesta obra de constante e metódica evangelização, cientes de que a formação autenticamente cristã da consciência é decisiva para uma profunda vida de fé e também para o amadurecimento social e o verdadeiro e equilibrado bem-estar da comunidade humana.

Com efeito, para merecer o título de comunidade, um grupo humano deve corresponder, na sua organização e nos seus objetivos, às aspirações fundamentais do ser humano. Por isso não é exagerado afirmar que uma vida social autêntica tem início na consciência de cada um. Dado que a consciência bem formada leva a realizar o verdadeiro bem do homem, a Igreja, especificando qual é este bem, ilumina o homem e, através de toda a vida cristã, procura educar a sua consciência. O ensinamento da Igreja, devido à sua origem – Deus –, ao seu conteúdo – a verdade – e ao seu ponto de apoio – a consciência –, encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa, crente e mesmo não crente. Concretamente, «a questão da vida e da sua defesa e promoção não é prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força extraordinária da fé, aquela pertence a cada consciência humana que aspira pela verdade e vive atenta e apreensiva pela sorte da humanidade. “(…) O "povo da vida" alegra-se de poder partilhar o seu empenho com muitos outros, de modo que seja cada vez mais numeroso o "povo pela vida", e a nova cultura do amor e da solidariedade possa crescer para o verdadeiro bem da cidade dos homens” [Enc. Evangelium vitæ (25/III/1995), 101].

Venerados Irmãos, falai ao coração do vosso povo, acordai as consciências, reuni as vontades num mutirão contra a crescente onda de violência e menosprezo do ser humano. Este, de dádiva de Deus acolhida na intimidade amorosa do matrimônio entre o homem e a mulher, passou a ser visto como mero produto humano. «Hoje, um campo primário e crucial da luta cultural entre o absolutismo da técnica e a responsabilidade moral do homem é o da bioética, onde se joga radicalmente a própria possibilidade de um desenvolvimento humano integral. Trata-se de um âmbito delicadíssimo e decisivo, onde irrompe, com dramática intensidade, a questão fundamental de saber se o homem se produziu por si mesmo ou depende de Deus. As descobertas científicas neste campo e as possibilidades de intervenção técnica parecem tão avançadas que impõem a escolha entre estas duas concepções: a da razão aberta à transcendência ou a da razão fechada na imanência» [Enc. Caritas in veritate (29/VI/2009), 74]. Jó, de modo provocatório, chama os seres irracionais a darem o próprio testemunho: «Pergunta, pois, aos animais e eles te ensinarão; às aves do céu e elas te instruirão, aos répteis da terra e eles te responderão, e aos peixes do mar e eles te darão lições. Quem não vê em tudo isto a mão de Deus que fez todas estas coisas? Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro de vida de todos os homens» (Jo 12, 7-10). A convicção da reta razão e a certeza da fé de que a vida do ser humano, desde a concepção até à morte natural, pertence a Deus e não ao homem, confere-lhe aquele caráter sagrado e aquela dignidade pessoal que suscita a única atitude legal e moral correta, isto é, a de profundo respeito. Porque o Senhor da vida falou: «Da vida do homem pedirei contas a seu irmão. (...) porque Deus fez o ser humano à sua imagem» (Gn 9, 5.6).

Meus amados e venerados Irmãos, nunca podemos desanimar no nosso apelo à consciência. Não seríamos seguidores fiéis do nosso Divino Mestre, se não soubéssemos em todas as situações, mesmo nas mais árduas, levar a nossa «esperança para além do que se pode esperar» (Rm 4, 18). Continuai a trabalhar pelo triunfo da causa de Deus, não com o ânimo triste de quem adverte só carências e perigos, mas com a firme confiança de quem sabe poder contar com a vitória de Cristo. Unida ao Senhor de modo inefável está Maria, plenamente conforme ao seu Filho, vencedor do pecado e da morte. Pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida, imploro de Deus luz, conforto, força, intensidade de propósitos e realizações para vós e vossos mais diretos colaboradores, ao mesmo tempo que de coração vos concedo, extensiva a todos os fiéis de cada comunidade diocesana, uma particular Bênção Apostólica.

[01688-06.01] [Texto original: Português]

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

REPORTAGEM VATICANA

Os especialistas em comunicação do Vaticano se reuniram semana passada, em Roma, para elaborar um documento sobre a Igreja e a nova mídia. Mas algo curioso aconteceu: depois de muitas criticas sobre o primeiro esboço do texto, eles decidiram iniciar novamente. Hoje, na Reportagem Vaticana vamos ver como nascem os documentos vaticanos e como, às vezes, não saem do papel. Eu sou John Thavis, responsável pelo escritório de Catholic News Service em Roma.
E eu sou Carol Glatz, correspondente em Roma de CNS. O que aconteceu no Pontifício Conselho das Comunicações Sociais não é muito comum. Todos concordam em dizer que as novas mídias são realmente importantes para a Igreja, por isso um documento a respeito parecia uma boa idéia. Mas os participantes do encontro no Vaticano, entre os quais muitos profissionais da mídia católica, não apreciaram o “vaticanês” - uma espécie de linguagem eclesial burocrática muito soporífera – na qual foi escrita o primeiro esboço do documento. Por isso foi mandado de novo ao remetente para ser reescrito.
Bom, é uma maneira muito democrática de escrever um documento, e nem todos os organismos vaticanos agem assim. As nove congregações vaticanas, por exemplo, mantêm tudo secreto até que o documento não esteja pronto para ser publicado. Existe consulta também, mas é confidencial. E pode levar muitos anos para esses documentos alcançarem a reta final. Só para dar um exemplo, o Vaticano demorou quase 10 anos para publicar seu documento dizendo que homossexuais não deveriam ser ordenados padres – sobre este assunto, houve um grande debate interno, mas pouca discussão fora.
Nos últimos 25 anos, a Congregação para a Doutrina da Fé foi o organismo vaticano que publicou mais documentos. E sua tarefa é rever qualquer documento sobre questões doutrinas. Todavia, mesmo sem poder de veto, tem igualmente um peso notável, e pode em algumas ocasiões obrigar a reescrever um documento.
Os documentos do Papa Bento XVI não estão sujeitos à mesma forma de escrutínio. Mas quando escreve uma encíclica ou outro texto importante, também o papa consulta organismos do Vaticano ou especialistas. Certamente, ele é livre para rejeitar conselhos – e fontes dizem que ele fez isso cerca de dois anos atrás quando ampliou o possível uso da missa tridentina.
Aquele documento era um “Motu proprio”, que em latim significa “de própria iniciativa”. E o Papa publicou vários sobre regras do Conclave, sobre os tradicionalistas católicos e sobre outros argumentos. Além disso, o papa escreveu dezenas de cartas sobre questões como a política econômica, a música litúrgica e a Igreja na China, que mesmo indo direto ao assunto, não têm, todavia o mesmo peso ou autoridade de uma encíclica.
Algumas vezes é mais fácil escrever um livro do que escrever um documento vaticano. Como fez recentemente o Cardeal Walter Kasper, talvez porque soubesse que suas reflexões sobre ecumenismo poderiam permanecer por muito tempo em análise antes de se tornarem um documento vaticano. E até mesmo o Papa Bento XVI optou por publicar suas reflexões sobre Jesus de Nazaré não como documento papa, mas como livro – que logo se tornou um bestseller. Eu sou John Thavis.

Fonte: H2ONews - 10/11/2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

BENTO XVI: “TEOLOGIA DO CORAÇÃO”, MAIS QUE “TEOLOGIA DA RAZÃO”

Intervenção durante a audiência geral


CIDADE DO VATICANO, quarta-feira, 4 de novembro de 2009
Catequese do Papa Bento XVI durante a audiência geral de hoje com os peregrinos reunidos na Praça de São Pedro.

***

Queridos irmãos e irmãs:

Na última catequese, apresentei as principais características da teologia monástica e da teologia escolástica do século XII, que poderíamos chamar, de certa forma, respectivamente, de “teologia do coração” e “teologia da razão”.
Entre os representantes de uma e de outra corrente teológica houve um amplo debate, às vezes intenso, simbolicamente apresentado pela controvérsia entre São Bernardo de Claraval e Abelardo.
Para compreender esta confrontação entre os dois grandes mestres, é bom recordar que a teologia é a busca de uma compreensão racional, enquanto for possível, do mistério da Revelação cristã, que acreditamos pela fé: fides quaerens intellectum – a fé busca a inteligibilidade –, por citar uma definição tradicional, concisa e eficaz.
Pois bem, enquanto São Bernardo, típico representante da teologia monástica, enfatiza a primeira parte da definição, isto é, a fides (a fé), Abelardo, que é um escolástico, incide sobre a segunda parte, isto é, sobre o intellectus, sobre a compreensão por meio da razão.
Para Bernardo, a própria fé está dotada de uma íntima certeza, fundada no testemunho da Escritura e no ensinamento dos Padres da Igreja. A fé, além disso, reforça-se pelo testemunho dos santos e pela inspiração do Espírito Santo na alma de cada crente. Nos casos de dúvida e de ambiguidade, a fé deve ser protegida e iluminada pelo exercício do Magistério eclesial.
Assim, para Bernardo, era difícil estar de acordo com Abelardo, e mais em geral com aqueles que submetiam as verdades da fé ao exame crítico da razão; um exame que comportava, em sua opinião, uma grave perigo, o intelectualismo, a relativização da verdade, a discussão das próprias verdades da fé.
Nesta forma de proceder, Bernardo via uma audácia levada até a falta de escrúpulos, fruto do orgulho da inteligência humana, que pretende “capturar” o mistério de Deus. Em uma de suas cartas, com muita dor, ele escreve: “A criatividade humana se apodera de tudo, não deixando nada para a fé. Enfrenta o que está acima dela, escruta o que lhe é superior, irrompe no mundo de Deus, altera os mistérios da fé, mais do que os ilumina; não abre o que está fechado e selado, mas o erradica; e o que não acha viável, considera como nada e rejeita crer nisso” (Epístola CLXXXVIII,1: PL 182, I, 353).
Para Bernardo, a teologia tem um único fim: o de promover a experiência viva e íntima de Deus. A teologia é, portanto, uma ajuda para amar cada vez mais e melhor o Senhor, como recita o título do tratado sobre o Dever de amar a Deus (De diligendo Deo).
Neste caminho, há diversos graus, que Bernardo descreve detalhadamente, até o cume, quando a alma do crente se embriaga nas alturas do amor. A alma humana pode alcançar, já na terra, essa união mística com o Verbo divino, união que o Doutor Melífluo descreve como “bodas espirituais”. O Verbo divino a visita, elimina as últimas resistências, ilumina-a, inflama-a e a transforma. Nesta união mística, a alma goza de uma grande serenidade e doçura, e canta ao seu Esposo um hino de alegria.
Como recordei na catequese dedicada à vida e à doutrina de São Bernardo, a teologia para ele não pode senão nutrir-se da oração contemplativa; em outras palavras, da união afetiva do coração e da mente com Deus.
Abelardo, que, por sua vez, é precisamente quem introduziu o termo “teologia” no sentido que entendemos hoje, coloca-se em uma perspectiva diversa. Nascido em Bretanha, na França, este famoso professor do século XII estava dotado de uma inteligência vivíssima e sua vocação era o estudo.
Ele se dedicou primeiro à filosofia e depois aplicou os resultados alcançados nesta disciplina à teologia, da qual foi professor na cidade mais culta da época, Paris, e sucessivamente nos mosteiros em que viveu.
Era um orador brilhante: suas aulas eram acompanhadas por verdadeiras massas de estudantes. De espírito religioso, mas personalidade inquieta, sua existência foi rica em golpes de cena: rebateu seus professores, teve um filho com uma mulher culta e inteligente, Eloísa; esteve frequentemente em polêmica com seus colegas teólogos; sofreu também condenações eclesiásticas, ainda que tenha morrido em plena comunhão com a Igreja, a cuja autoridade se submeteu com espírito de fé.
Precisamente São Bernardo contribuiu para a condenação de algumas doutrinas de Abelardo no sínodo provincial de Sens em 1140, e solicitou também a intervenção do papa Inocêncio II. O abade de Claraval rejeitava, como recordamos, o método intelectualista demais de Abelardo, que a seu ver reduzia a fé a uma simples opinião desvinculada da verdade revelada.
Os temores de Bernardo não eram infundados, mas compartilhados pelos demais, por outros grandes pensadores da sua época. Efetivamente, um uso excessivo da filosofia tornou perigosamente frágil a doutrina trinitária de Abelardo e, consequentemente, sua ideia de Deus.
No campo moral, seu ensinamento não estava privado de ambiguidade: ele insistia em considerar a intenção do sujeito como única fonte para descrever a bondade ou a malícia dos atos morais, descuidando, assim, do significado objetivo e do valor moral das ações: um subjetivismo perigoso.
Este é, como sabemos, um aspecto importante para a nossa época, na qual a cultura aparece frequentemente marcada por uma tendência crescente ao relativismo ético: só o “eu” decide o que é bom para mim, neste momento. Não podemos nos esquecer, contudo, dos grandes méritos de Abelardo, que teve muitíssimos discípulos e que contribuiu para o desenvolvimento da teologia escolástica, destinada a expressar-se de forma mais madura e fecunda no século seguinte.
Não devem ser desvalorizadas algumas das suas intuições, como, por exemplo, quando afirma que nas tradições religiosas não-cristãs já há uma preparação para a acolhida de Cristo, Verbo divino.
O que nós podemos aprender hoje da confrontação, frequentemente intensa, entre Bernardo e Abelardo e, em geral, entre a teologia monástica e a escolástica?
Antes de mais nada, penso que mostra a utilidade e a necessidade de uma discussão teológica sadia na Igreja, sobretudo quando as questões debatidas não foram definidas pelo Magistério, que continua sendo, contudo, um ponto de referência iniludível. São Bernardo, mas também o próprio Abelardo, reconheceram sempre sua autoridade. Além disso, as condenações que este último sofreu nos recordam que no campo teológico deve haver um equilíbrio entre os que poderíamos chamar de princípios arquitetônicos, que nos foram dados pela Revelação e que conservam por isso sempre uma importância prioritária, e os interpretativos, sugeridos pela filosofia, isto é, pela razão, e que têm uma função importante, mas só instrumental.
Quando este equilíbrio entre a arquitetura e os instrumentos de interpretação diminui, a reflexão teológica corre o risco de contaminar-se com erros, e corresponde então ao Magistério o exercício desse necessário serviço à verdade, que lhe é próprio.
Além disso, é preciso sublinhar que, entre as motivações que induziram Bernardo a colocar-se contra Abelardo e a solicitar a intervenção do Magistério, estava também a preocupação por salvaguardar os crentes simples e humildes, aqueles a quem é preciso defender quando correm o risco de ser confundidos ou desviados por opiniões muito pessoais e por argumentações teológicas sem escrúpulos, que poderiam colocar sua fé em perigo.
Eu gostaria de recordar, finalmente, que a confrontação teológica entre Bernardo e Abelardo concluiu com uma plena reconciliação entre eles, graças à mediação de um amigo comum, o abade de Cluny, Pedro o Venerável, de quem falei em uma das catequeses anteriores. Abelardo mostrou humildade em reconhecer seus erros. Bernardo usou de grande benevolência. Em ambos, prevaleceu o que deve estar verdadeiramente no coração quando nasce uma controversa teológica, isto é, salvaguardar a fé da Igreja e fazer a verdade triunfar na caridade. Que esta seja também hoje a atitude nas confrontações na Igreja, tendo sempre como meta a busca da verdade.
[No final da audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos em vários idiomas. Em português, disse:]
Uma cordial saudação aos peregrinos vindos de Coimbra e de São Paulo, ao grupo de Focolarinos do Brasil, aos fiéis cristãos da Catedral Nossa Senhora da Conceição em Bragança Paulista, com seu bispo, Dom José Maria Pinheiro, e à tripulação do Navio-Escola “Brasil” com o seu comandante, que aqui vieram movidos pelo desejo de afirmar e consolidar sua fé e adesão a Cristo, o Senhor dos Navegantes. Ele vos encha de alegria e o seu Espírito ilumine todas as decisões da vossa vida para realizardes fielmente o projeto de Deus a vosso respeito. Acompanha-vos a minha oração e bênção.
[Tradução: Aline Banchieri ©Libreria Editrice Vaticana]
Fonte: Zenit

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

EVANGELHO SEGUNDO S. LUCAS 12,49-53

Comentário ao Evangelho do dia feito por:
Santo Ambrósio (c. 340-397), Bispo de Milão e Doutor da Igreja
Comentário ao evangelho de Lucas, 7, 134 (a partir da trad. cf. SC 52, pp. 55ss.)


«Todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos ou terras por causa do Meu nome, receberá cem vezes mais» (Mt 19, 29)

«Julgais que Eu vim estabelecer a paz na terra? Não, Eu vo-lo digo, mas antes a divisão. Porque, daqui por diante, estarão cinco divididos numa só casa: três contra dois, e dois contra três». Em quase todas as passagens do Evangelho o sentido espiritual joga um papel importante; mas nesta passagem sobretudo, para não ser rejeitada pela dureza de uma interpretação simplista, é preciso procurar na trama do sentido a profundidade espiritual. [...] Como é que Ele próprio disse: «Dou-vos a Minha paz, deixo-vos a Minha paz» (Jo 14, 27), se veio separar os pais dos filhos, os filhos dos pais, rompendo os laços que os unem?
Como pode ser chamado «maldito o que trata com desprezo seu pai ou sua mãe» (Dt 27, 16), e fervoroso o que o abandona? Se compreendermos que a religião vem em primeiro lugar e a piedade filial em segundo, compreenderemos que esta questão se esclarece; com efeito, é preciso fazer passar o humano depois do divino. Porque, se temos deveres para com os pais, quanto mais para com o Pai dos pais, a quem devemos estar reconhecidos pelos nossos pais? [...] Ele não diz, portanto, que é preciso renunciar aos que amamos, mas que há que preferir Deus a todos. Aliás, encontramos noutro livro: «Quem amar pai ou mãe mais do que a Mim não é digno de Mim» (Mt 10, 37). Não te é interdito amares os teus pais, mas preferi-los a Deus. Porque as relações naturais são benefícios do Senhor, e ninguém deve amar os benefícios recebidos mais do que a Deus, que preserva os benefícios que dá.

A COEXISTÊNCIA DAS RELIGIÕES NA ÁFRICA

A África é um cúmulo de realidades muito diversificadas entre elas, também do ponto de vista religioso. Por isso, afirma o cardeal Jean-Louis Tauran, presidente do Pontifício Conselho para o diálogo inter-religioso, o continente africano é um importante laboratório de diálogo com os muçulmanos. De um diálogo, porém, fundado sobre o viver juntos.
No que se refere à fé católica, o Sínodo chamou a atenção, deste o primeiro dia, sobre o forte crescimento das comunidades cristãs. O cardeal Tauran encontrou na religiosidade natural dos africanos uma das razões desta vitalidade.
A fé está, portanto, progressivamente se difundindo em toda a África, chegando a penetrar nas culturas locais. Uma inculturação, explica o cardeal francês, que prossegue de modo espontâneo.
“Há uma grande variedade e é evidente que o Islã é vivido de modo diferente segundo os países. Mas no conjunto, no que se refere ao islã na África, pode-se dizer que apesar de tudo o diálogo de vida é uma realidade. No conjunto, o islã é tolerante, com algumas exceções, como por exemplo a Nigéria”.
“Os africanos são dotados de uma religiosidade toda natural. Não se deve esquecer que quando chegaram aqui os cristãos e mais tarde os muçulmanos encontraram populações que acreditavam em um ser supremo, com base na religião tradicional africana. Portanto, existia já um terreno favorável... os missionários não levaram Deus, mas sim Jesus Cristo”. “Creio que devem ser dados ainda muitos passos avante. Mas quando se olha para as liturgias na África, não são poucos os progressos feitos. Em particular se se olha para as procissões, cantos... pouco a pouco se chegou a ter um cristianismo africano, aberto à Igreja em todo o mundo, muito respeitável”.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

EVANGELHO SEGUNDO S. LUCAS 12,13-21

Comentário ao Evangelho do dia feito por:
São Basílio (c. 330-379), monge e bispo de Cesaréia, na Capadócia, Doutor da Igreja
Homília 6, sobre a riqueza; PG 31, 261ss. (a partir da trad. Luc comentado, DDB 1987, p. 110 rev.)


«Que hei-de fazer, uma vez que não tenho onde guardar a minha colheita?»

«Que hei-de fazer?» Há uma resposta imediata: «Satisfarei as almas dos esfomeados; abrirei os meus celeiros e convidarei todos os que passam necessidades. [...] Farei ouvir uma palavra generosa: vós, a quem falta o pão, vinde a mim; tomai a vossa parte, de acordo com as vossas necessidades, dos dons concedidos por Deus que jorram como que de uma fonte pública.» Mas tu, homem rico, insensato, estás bem longe disso! Por que razão? Ciumento de veres os outros gozarem de riquezas, entregas-te a cálculos miseráveis, não te preocupas em distribuir a cada um o indispensável, mas em tudo amealhar, privando os outros dos benefícios de que poderiam usufruir. [...]
E vós, meus irmãos, estai atentos para não conhecerdes o mesmo destino que este homem! Se a Escritura nos oferece este exemplo, é para que evitemos comportar-nos do mesmo modo. Imitai a terra: como ela, dai frutos, e não vos mostreis piores que ela, que no entanto é desprovida de alma. A terra dá as suas colheitas não para o seu próprio gozo, mas para te servir. Assim, todo o fruto da benevolência que revelares, recebê-lo-ás de volta, dado que as graças que fazem nascer as boas obras voltam aos que as dispensam. Alimentaste o que tinha fome, e o que deste mantém-se contigo, e vem mesmo um suplemento. Como o grão de trigo caído na terra aproveita ao que o semeou, o pão dado ao que tem fome far-te-á receber mais tarde benefícios superabundantes. Que a finalidade da tua lavoura seja para ti o início da sementeira no céu.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

EVANGELHO SEGUNDO S. LUCAS 11,42-46

Comentário ao Evangelho do dia feito por:
As Máximas dos Padres do Deserto (séculos IV e V)
Collection systématique, cap. 9 (a partir da trad. de SC 387, pp. 427ss.)


«Ai de vós, também, doutores da Lei, porque carregais os homens com fardos insuportáveis»

Um irmão que tinha pecado foi expulso da igreja pelo sacerdote; e o abba Bessarion levantou-se e saiu com ele, dizendo: «Eu também sou pecador» [...]
Certa vez, em Scété, um irmão cometeu uma falta. Convocou-se um conselho para o qual chamaram o abba Moisés, mas este recusou-se a comparecer. Então o padre mandou-lhe dizer: «Vem, porque toda a gente está à tua espera». Ele levantou-se, pegou numa cesta rota, encheu-a de areia, colocou-a aos ombros e foi assim. Os outros, que saíram ao seu encontro, perguntaram-lhe: «Que é isso, pai?» O ancião respondeu: «Os meus pecados vão-se derramando atrás de mim e eu nem consigo vê-los; e, no entanto, vim aqui hoje julgar os pecados de outrem». Ouvindo isto, não disseram nada ao irmão, mas perdoaram-lhe.
O abba Joseph perguntou ao abba Poemen: «Diz-me o que devo fazer para me tornar monge». O ancião respondeu: «Se queres encontrar repouso aqui e no mundo que há-de vir, repete continuamente: «Quem sou eu?» E não julgues ninguém».
Um irmão perguntou ao mesmo abba Poemen: «Se eu vir um pecado do meu irmão, será correto ocultá-lo?» O ancião respondeu-lhe: «Enquanto escondermos os pecados dos nossos irmãos, também Deus esconde os nossos; a partir do momento em que manifestamos as faltas dos irmãos, Deus manifesta também as nossas».

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

BENTO XVI: JESUS NOS CONVIDA AO DOM TOTAL DA VIDA

Bento XVI: Jesus nos convida ao dom total da vida

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EVANGELHO SEGUNDO S. LUCAS 11,29-32

Comentário ao Evangelho do dia feito por:

São Gregório de Nissa (c. 335-395), monge e bispo

Homilia sobre o Cântico dos Cânticos (a partir da trad. de Migne 1992, p.40 rev.)

«Aqui está quem é maior do que Salomão!»

O texto do Cântico dos Cânticos de Salomão apresenta a alma como uma noiva, preparada para uma união incorpórea, espiritual e sem mancha com Deus. Aquele que «deseja que todos os homens se salvem e conheçam a verdade» (1Tim 2, 4) expõe assim o meio mais completo, o feliz meio de alcançar a salvação, a saber, aquele que passa pelo amor. Há quem encontre a salvação no temor, evitando fazer o mal pela consideração dos castigos que nos ameaçam na geena. Há também quem leve uma vida de retidão e de virtude porque tem a esperança de receber o salário reservado àqueles que tiveram uma existência piedosa; estes agem, não por amor do bem, mas com a esperança de serem recompensados.

Ora, para avançarmos na perfeição, temos de começar por expulsar da alma o temor; é uma atitude servil não estarmos vinculados ao mestre apenas por amor. [...] Não amamos com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças (Mc 12, 30) um dos dons com os quais somos recompensados, mas Aquele que é a própria fonte destes bens. Assim deve ser a alma segundo a palavra de Salomão. [...]

Julgas que evoco o Salomão, o filho de Bersabé, que no alto da montanha sacrificou mil bois e que, a conselho de sua mulher estrangeira, cometeu um pecado? Não. Estou a pensar noutro Salomão, naquele que também nasceu de David segundo a carne, e que tem por nome «paz», pois o nome de Salomão significa «homem de paz». Esse é o verdadeiro Rei de Israel, o construtor do Templo de Deus, o detentor do conhecimento universal, Aquele cuja sabedoria é incomensurável - mais ainda, que é por essência sabedoria e verdade, cujo nome e cujo pensamento são perfeitamente divinos e sublimes. Ele serviu-Se de Salomão como de um instrumento; é Ele que, através da voz de Salomão, Se dirige a nós, primeiro nos Provérbios, depois no Eclesiastes, e depois no Cântico dos Cânticos, apresentando assim à nossa reflexão, com ordem e método, a forma de progredir com vista à perfeição.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

REFLEXÃO DO PAPA: RECONCILIAÇÃO, DOM DO ESPÍRITO

Primeira Congregação Geral, manhã de 5 de outubro

A seguir a reflexão feita por Bento XVI ontem de manhã na primeira congregação geral da assembléia do Sínodo para a África.

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Queridos irmãos e irmãs

Demos início agora ao nosso encontro sinodal, invocando o Espírito Santo e bem sabendo que neste momento não podemos realizar tudo aquilo que temos a fazer pela Igreja e pelo mundo: só na força do Espírito Santo podemos encontrar o que é reto e depois atuá-lo. E todos os dias começaremos o nosso trabalho invocando o Espírito Santo com a oração da Hora Terceira «Nunc sancte nobis Spiritus». Portanto, neste momento, juntamente convosco, gostaria de meditar um pouco sobre este hino, que abre o trabalho a cada dia, agora no Sínodo, mas também depois na nossa vida quotidiana.

«Nunc sancte nobis Spiritus». Peçamos para que o Pentecostes não seja só um acontecimento do passado, o primeiro início da Igreja, mas seja hoje, aliás agora: «nunc sancte nobis Spiritus». Peçamos que o Senhor realize agora a efusão do seu Espírito e crie novamente a sua Igreja e o mundo. Recordemos que os apóstolos depois da Ascensão não iniciaram - como talvez teria sido normal - a organizar, a criar a Igreja futura. Esperaram a ação de Deus, esperaram o Espírito Santo. Compreenderam que a Igreja não pode ser feita, que não é o produto da nossa organização: a Igreja deve nascer do Espírito Santo. Como o próprio Senhor foi concebido e nasceu do Espírito Santo, assim também a Igreja deve ser sempre concebida e nascer do Espírito Santo. Só com este ato criativo de Deus nós podemos entrar na atividade de Deus, na ação divina e colaborar com Ele. Neste sentido, também todo o nosso trabalho no Sínodo é colaborar com o Espírito Santo, com a força de Deus que nos antecede. E devemos sempre implorar de novo para que se cumpra esta iniciativa divina, na qual nós podemos depois ser colaboradores de Deus e contribuir para que de novo a sua Igreja nasça e cresça.

A segunda estrofe deste hino - «Os, lingua, mens, sensus, vigor, / Confessionem personent: / Flammescat igne caritas, / accendat ardor proximos» - é o coração desta oração. Imploremos a Deus três dons, os dons essenciais do Pentecostes, do Espírito Santo: confessio, caritas, próximos. Confessio: há a língua de fogo que é «racional», doa a palavra justa e faz pensar à superação da Babilônia na festa do Pentecostes. A confusão nascida do egoísmo e da soberba do homem, cujo efeito é não mais poder compreender-se, é superada pela força do Espírito, que une sem uniformizar, que dá unidade na pluralidade: cada um pode entender o outro, inclusive nas diversidades das línguas. Confessio: a palavra, a língua de fogo que o Senhor nos dá, a palavra comum na qual estamos todos unidos, a cidade de Deus, a santa Igreja, na qual toda a riqueza das diversas culturas está presente. Flammescat igne caritas. Esta confissão não é uma teoria mas é vida, é amor. O coração da santa Igreja é o amor, Deus é amor e comunica-se comunicando-nos o amor. E enfim, o próximo. A Igreja nunca é um grupo fechado em si, que vive por si como um dos muitos grupos que existem no mundo, mas se distingue pela universalidade da caridade, da responsabilidade pelo próximo.

Consideremos um por um estes três dons. Confessio: na linguagem da Bíblia e da Igreja antiga esta palavra há dois significados essenciais, que parecem opostos, mas que com efeito constituem uma única realidade. Confessio, antes de tudo, é a confissão dos pecados: reconhecer a nossa culpa e conhecer que diante de Deus somos insuficientes, somos culpados, não estamos na reta relação com Ele. Este é o primeiro ponto: conhecer-se a si mesmo na luz de Deus. Só nesta luz podemos conhecer-nos a nós mesmos, podemos entender inclusive quanto mal existe em nós e assim ver quanto deve ser renovado, transformado. Só na luz de Deus conhecemo-nos uns aos outros e vemos realmente toda a realidade.

Parece-me que devemos considerar tudo isto nas nossas análises sobre a reconciliação, a justiça e a paz. São importantes as análises empíricas, é importante que se conheça exatamente a realidade deste mundo. Contudo, estas análises horizontais, feitas com tanta exatidão e competência, são insuficientes. Não indicam os verdadeiros problemas porque não os colocam à luz de Deus. Se não virmos que na raiz está o Mistério de Deus, as coisas do mundo irão mal porque a relação com Deus não é ordenada. E se a primeira relação, aquela de base, não for correta, todas as outras relações, por mais que possa haver de bem, fundamentalmente não funcionam. Por isso, todas as nossas análises do mundo são insuficientes se não formos até a este ponto, se não considerarmos o mundo na luz de Deus, se não descobrirmos que na raiz das injustiças, da corrupção, está um coração não reto, um fechamento para com Deus e, portanto, uma falsificação da relação essencial que é o fundamento de todas as outras.

Confessio: compreender na luz de Deus as realidades do mundo, a primazia de Deus e, enfim, todo o ser humano e as realidades humanas, que tendem à nossa relação com Deus. E se ela não for correta, não alcança o ponto desejado por Deus, não entra na sua verdade, também todo o resto não é corrigível porque nascem de novo com todos os vícios que destroem a rede social, a paz no mundo.

Confessio: ver a realidade na luz de Deus, entender que no fundo as nossas realidades dependem da nossa relação com o nosso Criador e Redentor, e assim ir à verdade, à verdade que salva. Santo Agostinho, ao referir-se ao 3º capítulo do Evangelho de São João, definiu o ato da confissão cristã como «realizar a verdade, ir à luz». Só vendo na luz de Deus as nossas culpas, a insuficiência da nossa relação com Ele, caminhamos à luz da verdade. E só a verdade salva. Finalmente, atuamos na verdade: confessar realmente nesta profundidade da luz de Deus é realizar a verdade.

Este é o primeiro significado da palavra confessio, confissão dos pecados, reconhecimento da culpabilidade que resulta da nossa falida relação com Deus. Entretanto um segundo significado de confissão é dar graças a Deus, glorificar Deus, testemunhar Deus. Podemos reconhecer a verdade do nosso ser porque tem a resposta divina. Deus não nos deixou sós com os nossos pecados; até quando a nossa relação com a sua majestade está impedida, Ele não se retira mas vem e pega-nos pela mão. Por conseguinte, confessio é testemunho da bondade de Deus, é evangelização. Poderíamos dizer que a segunda dimensão da palavra confessio é idêntica à evangelização. Vemos isto no dia de Pentecostes, quando São Pedro, no seu discurso, por um lado acusa a culpa das pessoas - matastes o santo e o justo - mas ao mesmo tempo, diz: este Santo ressuscitou e ama-vos, abraça-vos, chama-vos para ser seus no arrependimento e no batismo, e também na comunhão do seu Corpo. Na luz de Deus, confessar torna-se necessariamente anunciar Deus, evangelizar e desse modo renovar o mundo.

A palavra confessio, contudo, recorda-nos ainda outro elemento. No capítulo 10 da Carta aos Romanos São Paulo interpreta a confissão do capítulo 30 do Deuteronômio. Neste último texto parece que os judeus, entrando na forma definitiva da aliança, na Terra Santa, tenham medo e não possam realmente responder a Deus como deveriam. O Senhor diz-lhes: não tenhais medo, Deus não está longe. Para alcançar Deus não é necessário atravessar um oceano desconhecido, não são necessárias viagens espaciais no céu, coisas complicadas ou impossíveis. Deus não está distante, não está do outro lado do oceano, nesses espaços imensos do universo. Deus está próximo. Está no teu coração e nos teus lábios, com a palavra da Torah, que entra no teu coração e se anuncia nos teus lábios. Deus está em ti e contigo, está próximo.

Na sua interpretação, São Paulo substitui a palavra Torah pela expressão confissão e fé. Diz: realmente Deus está próximo, não são necessárias expedições complicadas para chegar a Ele, nem aventuras espirituais ou materiais. Deus está próximo com a fé, está no teu coração, e com a confissão está nos teus lábios. Está em ti e contigo. Realmente Jesus Cristo com a sua presença dá-nos a palavra da vida. Assim entra, na fé, no nosso coração. Habita no nosso coração e na confissão levamos a realidade do Senhor ao mundo, a este nosso mundo. Este elemento parece-me muito importante: o Deus próximo. As coisas da ciência, da técnica incluem grandes investimentos: as aventuras espirituais e materiais são custosas e difíceis. Mas Deus doa-se gratuitamente. As maiores coisas desta vida - Deus, amor, verdade - são gratuitas. Deus doa-se no nosso coração. Diria que deveríamos com freqüência meditar esta gratuidade de Deus: não há necessidade de grandes dons materiais ou intelectuais para estar próximo de Deus. Deus doa-se gratuitamente no seu amor, está em mim no coração e nos lábios. Esta é a coragem, a alegria da nossa vida. Também é a coragem presente neste Sínodo, porque Deus não está distante: está conosco com a palavra da fé. Penso que também esta dualidade é importante: a palavra no coração e nos lábios. Esta profundidade da fé pessoal, que realmente me liga intimamente com Deus, em seguida deve ser confessada: fé e confissão, interioridade na comunhão com Deus e testemunho da fé que se exprime nos meus lábios e se torna tão sensível e presente no mundo. São dois aspectos importantes que estão sempre juntos.

Depois o hino sobre o qual estamos falando indica também os lugares nos quais se encontra a confissão: «os, lingua mens, sensus vigor». Todas as nossas capacidades de pensar, falar, sentir, agir, devem ressoar - o latim usa o verbo «personare» - a palavra de Deus. O nosso ser, em todas as suas dimensões, deveria estar repleto desta palavra, que se torna assim realmente sensível no mundo, que, através da nossa existência, ressoa no mundo: a palavra do Espírito Santo.

E depois, brevemente, outros dois dons. A caridade: é importante que o cristianismo não seja uma soma de idéias, uma filosofia, uma teologia, mas um modo de viver, o cristianismo é caridade, é amor. Só assim tornamo-nos cristãos: se a fé se transformar em caridade, se é caridade. Podemos dizer que também logos e caritas caminham juntos. O nosso Deus é, por um lado, logos - razão eterna. Mas esta razão é também amor, não é fria matemática que constrói o universo, não é um demiurgo: esta razão eterna é fogo, é caridade. Em nós mesmos deveria realizar-se esta unidade de razão e caridade, de fé e caridade. E assim transformados na caridade tornar, como dizem os Padres gregos, divinizados. Diria que no desenvolvimento do mundo este percurso é visto como uma subida, desde as primeiras realidades criadas até à criatura homem Mas esta escada ainda não terminou. O homem deveria ser divinizado e assim realizar-se. A unidade da criatura e do Criador: é este o verdadeiro desenvolvimento, alcançar a graça de Deus nesta abertura. A nossa essência é transformada na caridade. Se falamos deste desenvolvimento, pensamos sempre também nesta última meta, onde Deus quer chegar conosco.

Enfim, o próximo. A caridade não é algo individual, mas universal e concreto. Hoje na Missa proclamamos a página evangélica do bom samaritano, na qual vemos a dupla realidade da caridade cristã, que é universal e concreta. Este samaritano encontra um judeu que está além dos confins da sua tribo e da sua religião. Mas a caridade é universal e por isso este estrangeiro em todos os sentidos é para ele o próximo. A universalidade abre os limites que fecham o mundo e criam as diversidades e os conflitos. Ao mesmo tempo, o fato de que se deve fazer algo pela universidade não é filosofia mas ação concreta.

Devemos tender para esta unificação de universalidade e solidez, devemos abrir realmente estes confins entre tribos, etnias, religiões à universalidade do amor de Deus. E isto não só na teoria mas nos lugares de vida, com toda a solidez necessária. Rezemos ao Senhor para que nos doe tudo isto, na força do Espírito Santo. No final o hino é glorificação do Deus Trino e Uno e oração de conhecer e crer. Assim o fim regressa ao início. Rezemos a fim de que possamos conhecer, conhecer se torne crer e crer se torne amar, ação. Peçamos ao Senhor a fim de que o Espírito Santo suscite um novo Pentecostes, nos ajude a ser os seus servidores neste momento do mundo. Amém.

[© Libreria Editrice Vaticana]


Fonte: Agência Zenit – 05/10/2009