segunda-feira, 14 de julho de 2014

São Camilo de Lellis


Impulsivo e aventureiro, este militar se rendeu ao amor infinito de Jesus Crucificado e formou uma companhia de heróis da caridade, que se dedicam a servir os enfermos como uma terna mãe.

As vezes somos tentados a pensar que só é verdadeiramente Santo quem nunca cometeu a menor falta nem possui qualquer defeito, conservando alva e intacta sua veste batismal no decurso da vida. Mas como ignorar, entre numerosos Bem-aventurados, a santidade indiscutível de São Paulo Apóstolo, de Santo Agostinho ou daquela que é invocada como a primeira entre as virgens na Ladainha de Todos os Santos, Santa Maria Madalena?

São três fulgurantes casos de almas que se converteram na idade adulta, após terem cometido graves pecados. Deus — que é Misericórdia e Bondade — os resgatou por meio de graças superabundantes e os chamou para admiráveis missões a serviço da Santa Igreja. Pela fidelidade a estas graças, eles alcançaram a honra dos altares e deixaram, com o exemplo de sua vida, um rastro luminoso no firmamento dos Santos. Tal é a vida de São Camilo de Lellis.

Um soldado dissoluto

Nascido em Bucchianico, Itália, no domingo de Pentecostes de 1550, teve a infância marcada pela piedosa formação de sua mãe, Camila Compellis. Acostumada ao governo da casa, devido às longas ausências do marido, Giovanni de Lellis, grande militar mercenário, ela sabia harmonizar a disciplina e a bondade na educação do filho.

Dotado de um caráter impulsivo e forte, o menino sentiu-se atraído desde pequeno pelo estilo aventureiro da vida do pai, capitão famoso por haver servido a vários reinos da Europa. Aos 17 anos, Camilo dirigiu-se a Veneza a fim de alistar-se na luta contra os corsários turcos. Não muito tempo depois, encontrava o pai em Ancona, pois este também decidira lutar em Veneza. Mas, já idoso, Giovanni de Lellis foi tomado por uma grave doença e faleceu nos braços do filho, a meio caminho, antes que o pudesse levar de volta a Bucchianico.

Sentindo-se só — a mãe falecera alguns anos antes —, Camilo deixou- se arrastar pelos vícios do jogo e da bebida, tão comuns nos rudes ambientes soldadescos daquele então. Tornou-se um vagabundo e passou a viver do dinheiro que ganhava nas tabernas. Confessou, mais tarde, ter chegado a apostar sua própria camisa por nada mais possuir, sem, entretanto, jamais haver cedido à tentação do roubo. E afirmava, com gratidão, que Deus o preservara de cair no pecado da impureza.

Começou, nessa época, a sentir uma profunda dor na perna, na qual surgira uma chaga misteriosa que o acompanhou durante toda a vida e tornou-se um fator decisivo para sua conversão. Dela foi se tratar no conhecido hospital São Tiago dos Incuráveis, em Roma. Sem recursos para pagar as despesas, ofereceu seus préstimos como criado e ali teve o primeiro contato com o mundo dos enfermos. Contudo, acabou sendo expulso alguns meses mais tarde, devido a seu difícil temperamento.

Parcialmente curado, voltou a alistar-se como soldado e participou ainda de combates na Tunísia. No regresso para terras italianas, uma violenta tempestade surpreendeu sua embarcação perto de Nápoles. Ante o iminente risco de morte, fez o voto de vestir o hábito de São Francisco de Assis caso escapasse com vida. Passado o perigo, esqueceu-se da promessa, recaiu em seus inveterados vícios e seguiu perambulando pela Itália.

Rendido ao amor infinito de Jesus

Esbanjou no jogo todos os seus bens e ficou reduzido a pedir esmolas às portas da catedral da Manfredonia. Vendo aquele jovem espadaúdo e robusto em tão miserável situação, um caridoso ancião, chamado Antônio di Nicastro, compadeceu-se dele e ofereceu-lhe o trabalho de operário no convento dos capuchinhos, onde se realizavam algumas obras. O ambiente de recolhimento e o trato bondoso ali recebido foram abrandando suas impetuosas paixões, tornando-lhe possível ordenar um pouco sua vida.

Contava 25 anos quando o enviaram a um convento vizinho para buscar certa quantidade de provisões recebidas de esmola. Era o dia de Nossa Senhora da Candelária, 2 de fevereiro de 1575. Caminhava ele ao lado da mula de carga do convento e esta empacou de repente. Após esgotar, debalde, todos os recursos para fazê-la recomeçar a marcha, pôs-se a gritar com a pobre besta, dizendo-lhe grandes desaforos, como se ela pudesse entender algo. Tudo em vão...

Aprouve a Deus conceder-lhe, neste momento, a graça de ver-se retratado no comportamento daquele animal irracional. Percebeu que da mesma forma tinha procedido ao longo de sua vida: de nada lhe adiantaram os ensinamentos religiosos recebidos de sua extremosa mãe, a sacudida na consciência em meio à tempestade ou a bondade do frei guardião, seus reiterados esforços para fazê-lo entender que nossa alma é um campo de batalha, onde só vence quem tem a autêntica valentia de render-se nas mãos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim como a mula se obstinava em permanecer imóvel, ele teimava em não se emendar!

Caiu de joelhos no meio da estrada poeirenta e, com mão trêmula, tirou do bolso um Crucifixo que lhe dera um tio há tanto tempo... Levantando- o à altura do rosto, contemplou a “figura de seu Deus crucificado, suspenso e cravado na Cruz por amor a ele, para pagar o horrendo e terrível castigo merecido por seus inumeráveis pecados”.1 Com lágrimas de arrependimento e cheio de esperança, rendeu-se ao amor infinito de Jesus e, como o guerreiro que avança para a batalha, decidiu mudar de vida. “Camilo de Lellis soube inesperadamente e sem dúvida que era, afinal, um soldado verdadeiramente valente”!

Havia encontrado sua vocação!

De volta ao convento, transformado, pediu admissão na Ordem e tornou-se noviço capuchinho com o nome de frei Cristóvão. Seus irmãos de hábito o chamavam de “frei Humilde”,3 por seu empenho em disputar o último lugar, ser o servo de todos e ocupar- se dos serviços mais penosos e repugnantes. No entanto, a chaga de sua perna se agravava com o roçar do rústico tecido do hábito, e viu-se ele forçado a regressar ao hospital. Aparentemente recuperado, regressou ao convento capuchinho e retomou a vida comunitária, mas a úlcera reapareceu com mais ímpeto, obrigando-o a desligar-se da Ordem.

Pela terceira vez internou-se no hospital São Tiago, em fins de 1579. Agora era outro homem, desejoso de entregar-se por inteiro ao serviço dos doentes. E, desde então, até o dia de sua morte — 35 anos depois —, “toda a sua existência transcorrerá nos hospitais sem outro afã e outro desejo que o de exercitar sua ardente caridade com os pobres enfermos”.4 Os administradores, edificados por sua dedicação e considerando sua notável habilidade, o nomearam Mestre da Casa, cargo equivalente ao de superintendente executivo.

Um prodígio veio confirmar o acerto desta escolha. São Camilo passara longas horas animando um pobre homem, a quem seria amputada uma perna no dia seguinte. Quando o deixou, ele estava tão bem disposto que adormeceu tranquilo. Na hora marcada para a amputação, os cirurgiões constataram que a perna inexplicavelmente “estava curada de forma inesperada”.5

Foi quando despontou em sua alma o ardente desejo de congregar homens dispostos a dar assistência corporal e espiritual aos doentes, por puro amor a Deus, conscientes de que servi-los não era senão servir ao Divino Salvador: estive “enfermo e Me visitastes” (Mt 25, 36). Havia encontrado sua vocação!

Uma companhia de heróis da caridade

Camilo começou por tentar recrutar alguns elementos entre os funcionários do hospital, mas estes se mostraram muito chocados com a ideia de uma vida de tanta abnegação, sem lucro ou pagamento. Graças à força de seu bom exemplo e à crescente fama de suas virtudes, porém, conseguiu dar início a uma pia associação com o objetivo de prestar assistência aos doentes. Religiosos e noviços de várias ordens religiosas, sobretudo da Companhia de Jesus, vinham amiúde exercitar-se com ele nestas obras de caridade. Os padres jesuítas encaminhavam-lhe jovens nos quais discerniam vocação para este serviço. O Santo os acolhia de braços abertos e os estimulava: “Irmãos, considerai que os enfermos são a pupila e o coração de Deus e o que fazeis para estes pobrezinhos é feito para o próprio Deus”.

Sem embargo, Camilo aspirava a muito mais: formar uma companhia de heróis da caridade, que se dedicassem a servir os enfermos como uma terna mãe. Passava noites inteiras em oração e se mortificava, implorando aos Céus ajuda para tal obra. Conseguiu reunir cinco varões de escol, os quais prometeram segui-lo “na vida e na morte, na prosperidade e nas dificuldades”.7 Improvisaram num quarto do hospital um oratório, onde se reuniam para manter acesa a chama do ideal. O santo Fundador “parecia um Serafim pelas ardentes exortações que lhes fazia”.

“Esta obra é minha, e não tua!”

Não obstante, aos homens chamados para as obras de Deus não lhes faltam tribulações. Certo dia, dando acolhida a calúnias invejosas, a administração do hospital proibiu aquelas reuniões e mandou desmontar o oratório. Nesta mesma noite, cheio de aflição, Camilo passou longo tempo rezando diante do seu Crucifixo. Pedia uma inspiração, uma luz... Imerso nestas cogitações, adormeceu e viu a imagem do Divino Crucificado movendo docemente a cabeça, a dizer-lhe: “Não temas, ó pusilânime. Segue adiante, que Eu te ajudarei e estarei contigo!”.

Acordou com a alma inundada de alegria! Relatou a visão aos companheiros e decidiram continuar a se reunir, em segredo, na capela do hospital. Surgiram, todavia, novas e maiores dificuldades. Assaltou-o a dúvida sobre a realidade daquela visão noturna e, em consequência, da divina aprovação ao instituto nascente. Cheio de dor, prostrou-se de novo diante do venerando Crucifixo. E eis que o Salvador desprende os braços da Cruz, os estende em sua direção e repete com inefável doçura: “Por que te afliges, ó pusilânime? Continua a empresa, que Eu te ajudarei, pois esta obra é minha e não tua!”.10

Fortalecido por estas palavras, Camilo — que desejava ser sacerdote para exercer com maior eficácia seu apostolado — ingressou no Colégio Romano, sendo ordenado algum tempo depois, aos 34 anos. Congregou, então, seu pequeno grupo e constituíram uma comunidade.

Seu modo de vida foi aprovado por Sisto V, em 1586, que deu à nova instituição o nome de Congregação dos Ministros dos Enfermos, a qual tomou como hábito uma capa negra ornada com uma cruz vermelha, portada sobre a batina clerical. Cinco anos mais tarde, Gregório XIV a elevou à categoria de ordem religiosa, com o nome de Ordem de Clérigos Regulares Ministros dos Enfermos. Mas não demorou muito a ficar conhecida como Ordem dos Camilianos, em referência a seu fundador e primeiro superior geral.

Entrega sem limite aos enfermos

Com inesgotável zelo, São Camilo e seus religiosos exerciam suas atividades sobretudo no Hospital do Espírito Santo, próximo ao Vaticano. Os estabelecimentos de saúde da época deixavam muito a desejar em matéria de higiene, instalações e profissionais qualificados.

Pode-se imaginar o sofrimento dos doentes entregues aos cuidados de empregados mal remunerados e, com frequência, grosseiros. Além disso, eram muitas vezes alojados em quartos onde a deficiente ventilação favorecia a proliferação dos vírus e o mau odor impregnava os ares. Era neste ambiente repugnante à natureza humana, do qual todos procuravam fugir, que os camilianos passavam o dia inteiro, socorrendo com amor e alegria aqueles infelizes.

O Santo Fundador também estendeu sua benéfica atuação junto aos encarcerados e aos moribundos. Por mais fatigado que estivesse, seu ardor nunca diminuía e sua constância era o maior incentivo para os outros darem mais de si. A valentia destes heróis da caridade brilhou mais ainda por ocasião das pestes e epidemias que assolavam aquelas regiões. “Sem vacilar um momento, vendo a morte dizimar suas fileiras, dedicavam-se em esgotantes jornadas a cuidar dos atacados pela peste”.

Sem se preocupar com a úlcera da perna sempre aberta nem com outras doenças que lhe causavam verdadeiro suplício, “passava longas horas no hospital, cuidando dos enfermos, quase sem dormir, com um regime alimentar suficiente apenas para, literalmente, não morrer de fome”.

Uma obra que hoje atua em 35 países

A promissora expansão dos camilianos por toda a Península Itálica abriu para o fundador outro front de combate: uma dura luta para consolidar e manter intacto o carisma da instituição. Com humildade e inabalável firmeza, fez valer seu carisma de fundador não só contra objetantes externos, mas também perante religiosos rebeldes da própria Ordem. Obtida a vitória nesta batalha, estava cumprida sua missão neste mundo e podia partir para receber a recompensa demasiadamente grande (cf. Gn 15, 1).

E Deus não tardou a chamá-lo. Em meados de 1614, aos 64 anos de idade, viu-se obrigado a guardar o leito para recompor um pouco sua saúde minada por décadas de intensas atividades. Entretanto, tomado de saudades de seus queridos doentes do hospital do Espírito Santo, e pressentindo que morreria em breve, almejava vê-los ainda uma vez. Quando o médico permitiu-lhe sair do quarto para respirar ar fresco, mandou seus filhos espirituais levarem- no ao hospital, onde, emocionado, percorreu as inúmeras fileiras de macas e leitos, despedindo-se de cada um. Todos choravam ao sentir seu carinho e paternalidade.

A Divina Providência ainda lhe pediu que sofresse uma longa e dolorosa agonia. Na noite de 14 de julho, quando o sacerdote rezava: “Mitis, atque festivus, Christi Iesu tibi aspectus appareat — Que o suave e alegre rosto de Jesus Cristo te apareça”, 13 sorriu e exalou o último suspiro.


Espalhou-se pela Cidade Eterna a notícia de seu falecimento e formou-se diante do convento uma multidão, desejosa de prestar-lhe uma última homenagem, de pedir uma graça, uma cura, uma conversão. Tal foi o alvoroço que a autoridade pública precisou intervir para organizar as filas e manter a ordem. Este soldado de Cristo enriqueceu a Santa Igreja com uma magnífica obra que hoje, 400 anos depois, atua em 35 países dos cinco continentes, fazendo brilhar junto aos doentes e necessitados a luz de sua heroica e valente caridade. Bento XIV o canonizou em 1746, e Leão XIII, em 1886, o declarou Padroeiro dos Enfermos e dos Hospitais, junto com São João de Deus.

(Irmã Mary Teresa MacIsaac, EP; Revista Arautos do Evangelho, Julho/2014, n. 151, p. 32 à 35)

terça-feira, 8 de julho de 2014

O pacto das catacumbas vivido pelo Papa Francisco


No dia 16 de novembro de 1965 ao findar o Concilio Vaticano II (1962-1965), alguns bispos, animados por Dom Helder Câmara, celebraram uma missa nas Catacumbas de Santa Domitila, fora de Roma e fizeram um Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. Propunham-se ideais de pobreza e simplicidade, deixando seus palácios e vivendo em simples casas ou apartamentos. Agora com o Papa Francisco este pacto ganha plena atualidade. Vale à pena rememorar os compromissos assumidos pelos bispos.

"Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a excepcionalidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando, sobretudo, com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade de riqueza, especialmente no traje (tecidos ricos, cores berrantes, nas insígnias de matéria preciosa). Devem esses signos ser, com efeito, evangélicos: nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, na perspectiva de sermos menos administradores do que pastores e apóstolos.

5) Recusamos ser chamado, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor…). Preferimos ser chamado com o nome evangélico de Padre.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos).

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc. ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência” em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral – dois terços da humanidade – comprometemo-nos:

Ü      a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres; -requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas, sim, permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometermo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:

Ü      Esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida” com eles;

Ü      Suscitaremos colaboradores para serem mais animadores segundo o espírito, do que chefes segundo o mundo;

Ü      Procuraremos ser o mais humanamente presentes e acolhedores;

Ü      Mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.


Ajude-nos Deus a sermos fiéis“.

[uma grata lembrança de Leonardo Boff]

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Anjo da guarda


Anjos da guarda são os anjos que segundo as crenças cristãs, Deus envia no nosso nascimento para nos proteger durante toda a nossa vida. Na Bíblia a palavra Anjo significa "Mensageiro", um espírito muito puro que está perto de Deus para adorá-lo, e cumprir suas ordens e levar suas mensagens aos seres humanos, argumenta-se também que a Bíblia sustenta em algumas ocasiões a crença do anjo da guarda: "Vou enviar um anjo adiante de ti para te proteger no caminho e para te conduzir ao lugar que te preparei". (Êxodo 23, 20).

No século II o grande sábio Orígenes assinalava que "os cristãos acreditam que Deus designa a cada um, um anjo para que nos guie e proteja".

A celebração dedicada aos anjos da guarda surgiu na Espanha, no século V e espalhou-se por toda a Europa. A data foi fixada pela primeira vez em 29 de setembro, juntamente com a festa do Arcanjo Miguel.

O Inicio da celebração da festa distinta para os "Santos Anjos da Guarda", dedicada no dia 2 de Outubro tal como hoje, particular de cada pessoa, surge em 1670, com papa Clemente X, universalizada pelo Papa Paulo V, depois que o Papa Leão X aprovou o novo Ofício composto pelo franciscano João Colombi.

Oração do anjo da guarda

Na Inglaterra desde o ano 800 acontecia uma festa dedicada aos Anjos da Guarda e a partir do ano 1111 surgiu uma oração (apresentada a seguir). Da Inglaterra esta festa se estendeu de maneira universal depois do ano 1608 por iniciativa do Sumo Pontífice da época. O Dia do Anjo da Guarda é comemorado no dia 2 de outubro.

Anjo do Senhor - que por ordem da piedosa providência Divina, sois meu guardião - guarde-me neste dia (tarde ou noite) iluminai meu entendimento; dirigi meus afetos; governai meus sentimentos para que eu jamais ofenda ao Deus e Senhor.
Amém.

Essa é a oração tradicional católica Santo Anjo:

Santo Anjo do Senhor,
meu zeloso guardador,
pois que a ti me confiou a Piedade divina,
hoje e sempre
me governa, rege, guarda e ilumina.
Ámem.

Em Latim:

Angele Dei,
qui custos es mei,
me, tibi commissum pietate superna,
illumina, custodi,
rege et guberna.

Amen.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O Papa Luciani e o Papa Bergoglio


No sábado, 26 de agosto de 1978, à tarde, após apenas um dia de conclave, o cardeal proto-diácono Pericle Felici anunciava aos fiéis na Praça São Pedro a eleição do patriarca de Veneza Albino Luciani, como sucessor de Paulo VI. De origem humilde, nascido em Canale d’Agordo, num vale das montanhas belunenses, Luciani – que havia escolhido o nome de João Paulo em honra dos seus dois imediatos predecessores – fora bispo de Vitório Vêneto e, portanto, cardeal patriarca na diocese da Sereníssima. Seu “reinado” durou somente 33 dias: o Papa foi encontrado morto em seu leito na manhã de 29 de setembro.

A importância do seu pontificado, segundo disse João Paulo II, foi “inversamente proporcional à sua duração”. Com efeito, aquele que frequentemente foi recordado como “o Papa do sorriso”, suscitou muitas esperanças. A simplicidade de sua presença e de sua linguagem, suas palavras sobre o pecado e a misericórdia, sua maneira de ser pároco e pastor, sua evidente estranheza aos jogos curiais deixaram uma recordação indelével em tantas pessoas que ainda o veneram. Promovida por tantos fiéis e pelo inteiro episcopado do Brasil, a causa de beatificação se aproxima dos toques finais e está em fase de conclusão a “Positio” com a documentação e os testemunhos.

Embora sejam diversos por sua história, proveniência e formação, o Papa Luciani e o atual bispo de Roma Francisco têm diversos aspectos em comum. Francisco é um religioso jesuíta, Luciani um padre secular. Mas, é conhecida a atração que o jovem Albino percebia pela ordem fundada por Santo Inácio, em razão da influência exercida sobre ele pelo jesuíta bellunense Felice Cappello, do qual era também parente distante. Testemunhou-o a irmã de João Paulo I, Antonia Luciani, num escrito publicado sobre os “30 Dias” há uma década.

Meu irmão, a certa altura, teve o desejo de tornar-se jesuíta. Confiou isto precisamente a mim. Eram os anos de 1934-35. Pouco tempo antes que fosse ordenado sacerdote. Dois colegas seus de seminário, dos quais Albino era amigo de velha data, tinham entrado na Companhia de Jesus: o padre Giuseppe Strim di Calcade e o padre Roberto Busa... Ele me disse: “Sabes que Giuseppe Strim e Roberto Busa se tornaram jesuítas? Também a mim isso agradaria tanto...” “E se o queres” disse eu, “faze assim também tu”. “Não posso”, respondeu. “Pede permissão ao bispo...” E ele: “Eu o fiz, mas ele respondeu com um não”. Eram necessários sacerdotes que fiquem na diocese. E assim o bispo não permitiu.”

Um primeiro traço comum aos dois Papas é a simplicidade de suas palavras e a capacidade de fazer-se entender pelas pessoas humildes. Luciani tinha recebido sobre isto uma grande lição de seu pároco de Canale, que ao jovem seminarista havia recomendado pregar sempre tendo presente que suas palavras deviam ser compreendidas também pela velhinha sentada no fundo da igreja, que não tinha ido à escola.

Catequética em migalhas” é o título do livro que Luciani publicou em 1949, e também como bispo, cardeal e Papa permaneceu fiel àquela recomendação do pároco. As poucas audiências gerais que teve condições de realizar no Vaticano durante o mês de pontificado, caracterizadas por diálogos com as pessoas, sem textos escritos, são um exemplo que permanece na memória.

Também Francisco, como o demonstram as breves pregações matinais em Santa Marta, mas também as numerosas falas acrescentadas sem texto durante os Angelus, as catequeses e as homilias, se comunica de modo simples e direto.

Há, depois, sintonias que dizem respeito à mensagem. O Papa Francisco, desde o início de seu pontificado, tem sublinhado a importância da misericórdia, por ele apresentada como a mensagem mais importante de Jesus. Misericórdia e perdão: “Deus jamais se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir-lhe perdão”.

Também Luciani insistia sobre este tema:

Nenhum pecado é demasiado grande: uma miséria finita, embora enorme, poderá sempre ser coberta por uma misericórdia infinita”. Como Papa, ele que havia escolhida a palavra “humilitas” como seu emblema episcopal, recordava: “Corro o risco de dizer um despropósito, mas eu o digo: o Senhor ama tanto a humildade que, às vezes, permite pecados graves. Por que? Para que aqueles que os cometeram, estes pecados, depois de arrependidos, permaneçam humildes...”.

Ambos sempre sublinharam a importância da graça, da iniciativa de um Deus que nos “antecede”, nos precede. Ambos procuraram – como de resto o fez também Bento XVI – reduzir o protagonismo do Papa.

Tanto Luciani como Bergoglio, também após a ordenação episcopal, continuaram transcorrer bastante tempo no confessionário, em contato com as pessoas e seus problemas. Francisco, desde os primeiros dias de pontificado, contou episódios que se referiam à sua experiência de confessor e aos diálogos tidos com os penitentes. Luciani havia amadurecido uma posição de certa possibilidade – antes da publicação da “Humanae vitae” de Paulo VI – sobre a contraconcepção, precisamente em razão de seu estar em confessionário.

Outro ponto em comum e representado pela alergia com os padres enredeiros que usam despropositadamente o dinheiro. O Papa Francisco já pós a mão no IOR, que se encontra sob acusação por sua gestão nem sempre transparente. No diálogo com o rabino Abraham Skorka, publicado no livro “O céu e a terra” [Il cielo e la terra], o então cardeal Bergoglio referia um episódio acontecido pouco depois de sua nomeação a bispo auxiliar, no início dos anos noventa, quando dois funcionários oficiais procuraram envolvê-lo em transações financeiras pouco limpas com a escusa das ofertas para os pobres: “Para certas coisas eu sou um grande ingênuo, mas para outros se me ativa “o alertômetro”. E daquela vez funcionou”.

Luciani teve que se confrontar com problemas semelhantes em Vittorio Vêneto, e não é um mistério que, como patriarca de Veneza, não tivesse digerido o danosidade de certas operações do “banco vaticano”, permitidas e pouco ligadas aos ouropéis do “bispo príncipe”, tem diversas vezes falado deste tema. Ficaram famosas e causaram estupor as palavras pronunciadas por João Paulo I durante uma audiência, quando ele disse que a propriedade privada “não constitui para alguém um direito incondicionado e absoluto”, recordando que “os povos da fome interpelam hoje de maneira dramática os povos da opulência”. Eram palavras de Paulo VI.

Enfim, não é esquecido o ato que Francisco, desde sua primeira saudação aos fiéis na tarde de 13 de março passado, propôs ser acima de tudo “bispo de Roma”. Num colóquio com o Secretário de Estado Jean Villot, João Paulo I disse:

"Digo-lhe com o coração na mão que antes de tudo eu sou um padre e agora sou também Papa, mas eu quero ser um pastor, não um funcionário de ofício... Eu sou primeiro o bispo de Roma e depois o Papa. Sei que são duas coisas numa só, mas eu não quero fazer a figura do figurante diante dos meus párocos e de meu povo”.

Reportagem de Andrea Tornielli, publicada por Vatican insider, 24-08-2013.

Tradução é de Benno Dischinger.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Preparação para a Santa Missa – Santo Ambrósio


Santo Ambrósio barra a entrada da Catedral de Milão ao imperador Teodósio_Anthony van Dick - 1619/20

Oração de Santo Ambrósio

Senhor Jesus Cristo,
eu, pecador, não presumindo dos meus próprios méritos,
mas confiando na vossa bondade e misericórdia,
temo entretanto
e hesito em aproximar-me da mesa do vosso doce convívio.
Pois meu corpo e meu coração
estão manchados por muitas faltas,
e não guardei com cuidado o meu espírito e a minha língua.
Por isso, ó bondade divina e temível majestade,
na minha miséria recorro a Vós, fonte de misericórdia;
corro para junto de Vós a fim de ser curado,
refugio-me na vossa proteção,
anseio ter como Salvador Aquele que não posso suportar como Juiz.
Senhor, eu Vos mostro as minhas chagas
e Vos revelo a minha vergonha.
Sei que os meus pecados são muitos e grandes,
e temo por causa deles,
mas espero na vossa infinita misericórdia.
Olhai-me, pois, com os vossos olhos misericordiosos,
Senhor Jesus Cristo, Rei eterno, Deus e homem,
crucificado por causa do homem.
Escutai-me, pois espero em Vós;
tende piedade de mim, cheio de misérias e pecados,
Vós que jamais deixareis de ser para nós
a fonte de compaixão.
Salve, Vítima salvadora,
oferecida no patíbulo da Cruz por mim
e por todos os homens.
Salve, nobre e precioso Sangue,
que brotas das chagas
de meu Senhor Jesus Cristo crucificado
e lavas os pecados do mundo inteiro.
Lembrai-Vos, Senhor, da vossa criatura
resgatada por vosso Sangue.
Arrependo-me de ter pecado,
desejo reparar o que fiz.
Livrai-me, ó Pai clementíssimo,
de todas as minhas iniquidades e pecados,
para que, inteiramente purificado,
mereça participar dos Santos Mistérios.
E concedei que o vosso Corpo e o vosso Sangue,
que eu, embora indigno, me preparo para receber,
sejam perdão para os meus pecados
e completa purificação de minhas faltas.
Que eles afastem de mim os pensamentos maus
e despertem os bons sentimentos;
tornem eficazes as obras que Vos agradam,
e protejam meu corpo e minha alma
contra as ciladas dos meus inimigos.
Amém.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Audiências do Papa Bento XVI sobre Santo Agostinho (Audiências, 2008)


Consagração de Santo Agostinho


I. A vida – 09 de janeiro
II. Os últimos anos e a morte – 16 de janeiro
III. A Doutrina. A fé e a razão – 30 de janeiro
IV. Os escritos – 20 de fevereiro
V. A tríplice conversão – 27 de fevereiro


PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI
Quarta-feira, 9 de Janeiro de 2008

Santo Agostinho de Hipona

Queridos irmãos e irmãs!

Depois das grandes festas de Natal, gostaria de voltar às meditações sobre os Padres da Igreja e falar hoje do maior Padre da Igreja latina, Santo Agostinho: homem de paixão e de fé, de grande inteligência e incansável solicitude pastoral, este grande santo e doutor da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou uma marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo. Pelo seu singular relevo, Santo Agostinho teve uma influência vastíssima, e poder-se-ia afirmar, por um lado, que todas as estradas da literatura latina cristã levam a Hipona (hoje Annaba, à beira-mar da Argélia), o lugar onde era Bispo e, por outro, que desta cidade da África romana, da qual Agostinho foi Bispo de 395 até à morte em 430, se ramificam muitas outras estradas do cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental.

Raramente uma civilização encontrou um espírito tão grande, que soubesse acolher os seus valores e exaltar a sua intrínseca riqueza, inventando ideias e formas das quais se alimentariam as gerações vindouras, como ressaltou também Paulo VI: "Pode-se dizer que todo o pensamento da antiguidade conflui na sua obra e dela derivam correntes de pensamento que permeiam toda a tradição doutrinal dos séculos sucessivos" (AAS 62, 1970, p. 426). Além disso, Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras. O seu biógrafo Possídio diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever tantas coisas durante a vida. Falaremos destas diversas obras num próximo encontro. Hoje a nossa atenção concentra-se sobre a sua vida, que se reconstrói bem pelos escritos, e em particular pelas Confessiones, a extraordinária autobiografia espiritual, escrita em louvor a Deus, que é a sua obra mais famosa. E são precisamente as Confessiones agostinianas, com a sua atenção à interioridade e à psicologia, que constituem um modelo único na literatura ocidental, e não só, também não religiosa, até à modernidade. Esta atenção à vida espiritual, ao mistério do eu, ao mistério do Deus que se esconde no eu, é uma coisa extraordinária sem precedentes e permanece para sempre, por assim dizer, um "vértice" espiritual.

Mas, falando da sua vida, Agostinho nasceu em Tagaste na Província de Numídia, na África romana a 13 de Novembro de 354, filho de Patrício, um pagão que depois se tornou catecúmeno, e de Mônica, cristã fervorosa. Esta mulher apaixonada, venerada como santa, exerceu sobre o filho uma grandíssima influência e educou-o na fé cristã. Agostinho recebeu também o sal, como sinal de acolhimento no catecumenato. E permaneceu sempre fascinado pela figura de Jesus Cristo; aliás, ele diz que amou sempre Jesus, mas que se afastou cada vez mais da fé eclesial, da prática eclesial, como acontece hoje com muitos jovens.

Agostinho tinha também um irmão, Navígio, e uma irmã, da qual não sabemos o nome e que, tendo ficado viúva, chefiou depois um mosteiro feminino. O jovem, de inteligência aguda, recebeu uma boa educação, mesmo se nem sempre foi um estudante exemplar. Contudo ele estudou bem a gramática, primeiro na sua cidade natal, depois em Madaura, e a partir de 370 retórica em Cartago, capital da África romana: dominava perfeitamente a língua latina, mas não conseguiu dominar do mesmo modo o grego nem aprendeu o púnico, falado pelos seus conterrâneos. Precisamente em Cartago Agostinho leu pela primeira vez o Hortensius, um escrito de Cícero que depois se perdeu, o qual está na base do seu caminho rumo à conversão. De fato, o texto de Cícero despertou nele o amor pela sabedoria, como escreverá, já Bispo, nas Confessiones: "Aquele livro mudou verdadeiramente o meu modo de sentir", a ponto que "de repente perdeu valor qualquer esperança vã e desejava com um incrível fervor do coração a imortalidade da sabedoria" (III, 4, 7).

Mas estando convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se encontrou efetivamente a verdade, e dado que neste livro apaixonante lhe faltava aquele nome, logo após tê-lo lido começou a ler a Escritura, a Bíblia. Mas ficou desiludido. Não só porque o estilo latino da tradução da Sagrada Escritura era insuficiente, mas também porque o próprio conteúdo lhe pareceu insatisfatório. Nas narrações da Escritura sobre guerras e outras vicissitudes humanas não encontrava a altura da filosofia, o esplendor de busca da verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e assim procurava uma religião que correspondesse ao seu desejo de verdade e também ao seu desejo de se aproximar de Jesus. Caiu assim na rede dos maniqueus, que se apresentavam como cristãos e prometiam uma religião totalmente racional. Afirmavam que o mundo está dividido em dois princípios: o bem e o mal. E assim se explicaria toda a complexidade da história humana. Agostinho apreciava também a moral dualista, porque implicava uma moral muito alta para os eleitos: e para quem, como ele, a ela aderia, era possível uma vida muito mais adequada à situação do tempo, sobretudo para um homem jovem. Portanto, tornou-se maniqueu, convencido naquele momento de ter encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade e amor a Jesus Cristo. E teve também uma vantagem concreta para a sua vida: de fato, a adesão aos maniqueus abria perspectivas fáceis para fazer carreira. Aderir àquela religião que contava muitas personalidades influentes permitia-lhe prosseguir a relação estabelecida com uma mulher e continuar a sua carreira. Desta mulher teve um filho, Adeodato, por ele muito querido, muito inteligente, que estará depois presente na preparação para o batismo junto do lago de Como, participando naqueles "Diálogos" que Santo Agostinho nos transmitiu. Infelizmente o jovem faleceu prematuramente. Professor de gramática aos vinte anos na sua cidade natal, regressou cedo a Cartago, onde foi um brilhante e celebrado mestre de retórica. Todavia, com o tempo, Agostinho começou a afastar-se da fé dos maniqueus, que o desiludiram precisamente sob o ponto de vista intelectual porque não esclareceram as suas dúvidas, e transferiu-se para Roma, e depois para Milão, onde na época residia a corte imperial e onde obtivera um lugar de prestígio graças ao interesse e às recomendações do prefeito de Roma, o pagão Símaco, hostil ao Bispo de Milão, Santo Ambrósio.

Em Milão Agostinho adquiriu o costume de ouvir inicialmente para enriquecer a sua bagagem retórica as lindíssimas pregações do Bispo Ambrósio, que tinha sido representante do imperador para a Itália setentrional, e pela palavra do grande prelado milanês o retórico africano sentiu-se fascinado; e não só pela sua retórica, sobretudo o conteúdo atingiu cada vez mais o seu coração. O grande problema do Antigo Testamento, da falta de beleza retórica, de elevação filosófica resolveu-se, nas pregações de santo Ambrósio, graças à interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho compreendeu que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus Cristo. Encontrou assim a chave para compreender a beleza, a profundidade também filosófica do Antigo Testamento e percebeu toda a unidade do mistério de Cristo na história e também a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no Logos, em Cristo Verbo eterno que se fez carne.

Em breve tempo Agostinho deu-se conta de que a literatura alegórica da Escritura e a filosofia neoplatônica praticadas pelo Bispo de Milão lhe permitiam resolver as dificuldades intelectuais que, quando era jovem, na sua primeira abordagem aos textos bíblicos, lhe pareciam insuperáveis.

À dos escritos dos filósofos Agostinho fez seguir-se a leitura renovada da Escritura e, sobretudo das Cartas paulinas. A conversão ao cristianismo, a 15 de Agosto de 386, colocou-se no ápice de um longo e atormentado percurso interior, do qual falaremos noutra catequese, e o africano transferiu-se para o campo a norte de Milão, nas proximidades do lago de Como com a mãe Mônica, o filho Adeodato e um pequeno grupo de amigos a fim de se preparar para o batismo. Assim, aos trinta e dois anos, Agostinho foi batizado por Ambrósio a 24 de Abril de 387, durante a vigília pascal, na Catedral de Milão.

Depois do batismo, Agostinho decidiu regressar à África com os amigos, com a ideia de praticar uma vida comum, de tipo monástico, ao serviço de Deus. Mas em Óstia, à espera de partir, a mãe improvisamente adoeceu e pouco mais tarde faleceu, dilacerando o coração do filho. Regressando finalmente à pátria, o convertido estabeleceu-se em Hipona para ali fundar um mosteiro. Nesta cidade da beira-mar africana, apesar das suas resistências, foi ordenado presbítero em 391 e iniciou com alguns companheiros a vida monástica na qual pensava há tempos, dividindo os seus dias entre a oração, o estudo e a pregação. Ele desejava estar só ao serviço da verdade, não se sentia chamado à vida pastoral, mas depois compreendeu que a chamada de Deus era para ser pastor entre os outros, e oferecer assim o dom da verdade aos demais. Em Hipona, quatro anos mais tarde, em 395, foi consagrado Bispo. Continuando a aprofundar o estudo das Escrituras e dos textos da tradição cristã, Agostinho foi um Bispo exemplar no seu incansável compromisso pastoral: pregava várias vezes por semana aos seus fiéis, apoiava os pobres e os órfãos, cuidava da formação do clero e da organização de mosteiros femininos e masculinos. Em pouco tempo o antigo retórico afirmou-se como um dos representantes mais importantes do cristianismo daquele tempo: muito ativo no governo da sua diocese com notáveis influências também civis nos mais de 35 anos de episcopado, o Bispo de Hipona exerceu grande influência na guia da Igreja católica da África romana e mais em geral no cristianismo do seu tempo, enfrentando tendências religiosas e heresias tenazes e desagregadoras como o maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo, que punham em perigo a fé cristã no Deus único e rico em misericórdia.

E a Deus se confiou Agostinho todos os dias, até ao extremo da sua vida: atingido por febre, quando havia três meses que Hipona estava assediada pelos vândalos invasores, o Bispo narra o amigo Possídio na Vita Augustini pediu para transcrever em letras grandes os salmos penitenciais "e fez pregar as folhas na parede, de modo que estando de cama durante a sua doença os podia ver e ler, e chorava ininterruptamente lágrimas quentes" (31, 2). Transcorreram assim os últimos dias da vida de Agostinho, que faleceu a 28 de Agosto de 430, quando ainda não tinha completado 76 anos. Dedicaremos os próximos encontros às suas obras, à sua mensagem e à sua vicissitude interior.

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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI
Quarta-feira, 16 de Janeiro de 2008

Santo Agostinho de Hipona

Queridos irmãos e irmãs!

Hoje, como na passada quarta-feira, gostaria de falar do grande Bispo de Hipona, Santo Agostinho. Quatro anos antes de morrer, ele quis nomear o sucessor. Por isso, a 26 de Setembro de 426, reuniu o povo na Basílica da Paz, em Hipona, para apresentar aos fiéis aquele que tinha designado para tal tarefa. Disse: "Nesta vida somos todos mortais, mas o último dia desta vida é para cada indivíduo sempre incerto. Contudo, na infância espera-se chegar à adolescência; na adolescência à juventude; na juventude à idade adulta; na idade adulta à maturidade; na idade madura à velhice. Não se tem a certeza de a alcançar, mas espera-se. A velhice, ao contrário, não tem diante de si outro período no qual esperar; a sua própria duração é incerta... Eu por vontade de Deus cheguei a esta cidade no vigor da minha vida; mas agora a minha juventude passou e eu já sou velho" (Ep 213, 1). Nesta altura Agostinho pronunciou o nome do sucessor designado, o sacerdote Heráclito. A assembleia explodiu num aplauso de aprovação repetindo vinte e três vezes: "Deus seja louvado! Deus seja louvado!". Com outras aclamações os fiéis aprovaram, além disso, quanto Agostinho disse depois sobre os propósitos para o seu futuro: queria dedicar os anos que lhe restavam a um estudo mais intenso das Sagradas Escrituras (cf. Ep 213, 6).

De fato, seguiram-se quatro anos de extraordinária atividade intelectual: realizou obras importantes, empreendeu outras não menos empenhativas, fez debates públicos com os hereges procurava sempre o diálogo interveio para promover a paz nas províncias africanas assediadas pelas tribos bárbaras do sul. Neste sentido escreveu ao conde Dário, que foi à África para resolver a discórdia entre o conde Bonifácio e a corte imperial, da qual se estavam a aproveitar as tribos dos Mauritanos pelas suas incursões: "O maior título de glória afirmava na carta é precisamente o de suprimir a guerra com as palavras, em vez de matar os homens com a espada, e procurar ou manter a paz com a paz e não com a guerra. Sem dúvida, também os que combatem, se são bons, procuram sem dúvida a paz, mas à custa do derramamento de sangue. Tu, ao contrário, foste enviado precisamente para impedir que se procure derramar o sangue de alguém" (Ep 229, 2). Infelizmente, a esperança de uma pacificação dos territórios africanos foi desiludida: em Maio de 429 os Vândalos, convidados para a África por vingança pelo próprio Bonifácio, passaram o estreito de Gibraltar e invadiram a Mauritânia. A invasão atingiu rapidamente as outras ricas províncias africanas. Em Maio ou em Junho de 430 "os destruidores do império romano", como Possídio qualifica aqueles bárbaros (Vita, 30, 1), estavam em volta de Hipona, que assediaram.

Na cidade tinha procurado refúgio, o qual, tendo-se reconciliado demasiado tarde com a corte, procurava agora em vão impedir o caminho aos invasores. O biógrafo Possídio descreve o sofrimento de Agostinho: "As lágrimas eram, mais do que o habitual, o seu pão noite e dia e, tendo já chegado ao extremo da sua vida, mais que os outros arrastava à amargura e ao luto a sua velhice (Vida, 28, 6). E explica: "De fato, aquele homem de Deus via os massacres e as destruições das cidades; destruídas as casas no campo e os habitantes mortos pelos inimigos ou afugentados e desorientados; as igrejas privadas dos sacerdotes e dos ministros, as virgens sagradas e os religiosos dispersos por toda a parte; entre eles, outros mortos sob as torturas, outros assassinados pela espada, outros feitos prisioneiros, perdida a integridade da alma e do corpo e também a fé, reduzidos em dolorosa e longa escravidão pelos inimigos" (ibid., 28, 8).

Mesmo idoso e cansado, Agostinho conquistou, contudo sempre simpatias, confortando-se a si mesmo e aos outros com a oração e a meditação sobre os misteriosos desígnios da Providência. Falava, a este propósito, da "velhice do mundo" e verdadeiramente era velho esse mundo romano falava desta velhice como já tinha feito anos antes para confortar os prófugos provenientes da Itália, quando em 410 os Godos de Alarico tinham invadido a cidade de Roma. Na velhice, dizia, os doentes abundam: tosse, catarro, remela, ansiedade, esgotamento. Mas se o mundo envelhece, Cristo é perpetuamente jovem. E então o convite: "Não rejeitar rejuvenescer unido a Cristo, também no mundo velho. Ele diz-te: Não temas, a tua juventude renovar-se-á como a da águia" (cf. Serm. 81, 8). Por conseguinte, o cristão não deve desanimar mesmo em situações difíceis, mas empenhar-se por ajudar quem está em necessidade.

É quanto o grande Doutor sugere respondendo ao Bispo de Tiabe, Honorato, que lhe tinha pedido se, sob as ameaças das invasões bárbaras, um Bispo, um sacerdote ou um homem qualquer de Igreja pudesse fugir para salvar a vida: "Quando o perigo é comum a todos, isto é, a Bispos, clérigos e leigos, os que têm necessidade dos outros não sejam abandonados por aqueles dos quais têm necessidade. Neste caso transfiram-se todos para lugares seguros; mas se alguns têm necessidade de permanecer, não sejam abandonados por aqueles que têm o dever de os assistir com o ministério sagrado, de modo que se salvem juntamente ou juntos suportem as calamidades que o Pai de família quiser que sofram" (Ep 228, 2). E concluía: "Esta é a prova suprema da caridade" (ibid., 3). Como não reconhecer, nestas palavras, a mensagem heróica que tantos sacerdotes, ao longo dos séculos, acolheram e fizeram própria?

Entretanto a cidade de Hipona resistia. A casa-mosteiro de Agostinho tinha aberto as suas portas para acolher os colegas no episcopado que pediam hospitalidade. Entre eles encontrava-se também Possídio, já seu discípulo, o qual pôde assim deixar-nos o testemunho direto daqueles últimos e dramáticos dias. "No terceiro mês daquela invasão narra ele caiu de cama com febre: era a sua última doença" (Vita, 29, 3).

O santo idoso aproveitou daquele tempo finalmente livre para se dedicar com mais intensidade à oração. Costumava afirmar que ninguém, Bispo, religioso ou leigo, por mais irrepreensível que possa parecer o seu comportamento, pode encarar a morte com uma adequada penitência. Por isso ele repetia continuamente entre lágrimas os salmos penitenciais, que tantas vezes recitara com o povo (cf. ibid., 31, 2).

Quanto mais se agravava a doença, mais o Bispo moribundo sentia necessidade de solidão e de oração: "Para não ser incomodado por ninguém no seu recolhimento, cerca de dez dias antes de sair do corpo implorou a nós presentes para não deixar entrar ninguém no seu quarto fora das horas em que os médicos iam visitá-lo ou quando lhe levavam as refeições. A sua vontade foi cumprida exatamente e durante todo aquele tempo ele dedicava-se à oração" (ibid., 31, 3). Cessou de viver a 28 de Agosto de 430: o seu grande coração tinha-se finalmente aplacado em Deus.

"Para a deposição do seu corpo informa Possídio foi oferecido a Deus o sacrifício, ao qual nós assistimos, e depois foi sepultado" (Vita, 31, 5). O seu corpo, em data incerta, foi transferido para a Sardenha e dali, por volta de 725, para Pavia, na Basílica de São Pedro "in Ciel d'oro", onde repousa ainda hoje. O seu primeiro biógrafo tem sobre ele este juízo conclusivo: "Deixou à Igreja um clero muito numeroso, assim como mosteiros de homens e de mulheres cheios de pessoas dedicadas à continência sob a obediência dos seus superiores, juntamente com as bibliotecas que contêm livros e discursos seus e de outros santos, dos quais se conhece qual foi por graça de Deus o seu mérito e a sua grandeza na Igreja, e nos quais os fiéis sempre o encontram vivo" (Possídio, Vita, 31, 8).

Trata-se de uma afirmação à qual nos podemos associar: nos seus escritos também nós o "encontramos vivo". Quando leio os escritos de Santo Agostinho não tenho a impressão que é um homem morto mais ou menos há mil e seiscentos anos, mas sinto-o como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que fala a nós com a sua fé vigorosa e atual. Em Santo Agostinho que nos fala, fala a mim nos seus escritos, vemos a atualidade permanente da sua fé; da fé que vem de Cristo, Verbo Eterno Encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos ver que esta fé não é de ontem, mesmo tendo sido pregada ontem; é sempre de hoje, porque Cristo é realmente ontem, hoje e para sempre. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Assim nos encoraja Santo Agostinho a confiar-nos a este Cristo sempre vivo e a encontrar assim o caminho da vida.

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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI
Quarta-feira, 30 de Janeiro de 2008

Santo Agostinho de Hipona

Queridos amigos

Depois da Semana de oração pela unidade dos cristãos voltamos hoje à grande figura de Santo Agostinho. O meu querido Predecessor João Paulo II dedicou em 1986, isto é, no décimo sexto centenário da sua conversão, um longo e denso documento, a Carta apostólica Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto "um agradecimento a Deus pelo dom feito à Igreja, e através dela à humanidade inteira, com aquela admirável conversão". Sobre o tema da conversão gostaria de voltar a refletir numa próxima Audiência. É um tema fundamental não só para a sua vida pessoal, mas também para a nossa. No Evangelho de domingo passado o próprio Senhor resumiu a sua pregação com a palavra: "Convertei-vos". Seguindo o caminho de Santo Agostinho, poderíamos meditar sobre o que foi esta conversão: uma coisa definitiva, decisiva, mas a decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda a nossa vida.

Hoje a catequese é dedicada, ao contrário, ao tema fé e razão, que é determinante, ou melhor, o tema determinante para a biografia de Santo Agostinho. Quando era criança tinha aprendido da sua mãe Mônica a fé católica. Mas quando era adolescente abandonou esta fé porque não via a sua racionalidade e não queria uma religião, que não fosse também para ele expressão da razão, isto é, da verdade. A sua sede de verdade era radical e levou-o, portanto a afastar-se da fé católica. Mas a sua radicalidade era tal que ele não podia contentar-se com filosofias que não alcançassem a própria verdade, que não chegassem a Deus. E a um Deus que não fosse só uma última hipótese cosmológica, mas o verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e que entra na nossa própria vida. Assim todo o percurso intelectual e espiritual de Santo Agostinho constitui um modelo válido também hoje na relação entre fé e razão, tema não só para homens crentes mas para cada homem que procura a verdade, tema central para o equilíbrio e o destino de cada ser humano. Estas duas dimensões, fé e razão, não podem ser separadas nem contrapostas, mas devem antes estar sempre juntas. Como escreveu o próprio Agostinho, depois da sua conversão, fé e razão são "as duas forças que nos levam a conhecer" (Contra Academicos, III, 20, 43). A este propósito permanecem justamente célebres as duas fórmulas agostinianas (Sermones, 43, 9) que expressam esta síntese coerente entre fé e razão: crede ut intelligas ("crê para compreender") o crer abre o caminho para passar pela porta da verdade, mas também, e inseparavelmente, intellige ut credas ("compreende para crer"), perscruta a verdade para poder encontrar Deus e crer.

As duas afirmações de Agostinho exprimem com eficaz prontidão e com igual profundidade a síntese deste problema, na qual a Igreja católica vê expresso o próprio caminho. Historicamente esta síntese vai-se formando, ainda antes da vinda de Cristo, no encontro entre fé judaica e pensamento grego no judaísmo helênico. Sucessivamente na história esta síntese foi retomada e desenvolvida por muitos pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão significa, sobretudo que Deus não está longe: não está longe da nossa razão e da nossa vida; está próximo de cada ser humano, perto do nosso coração e da nossa razão, se realmente nos pusermos a caminho.

Precisamente esta proximidade de Deus ao homem foi sentida com extraordinária intensidade por Agostinho. A presença de Deus no homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas pode ser reconhecida e descoberta no próprio íntimo: não saias afirma o convertido, mas "volta para ti"; no homem interior habita a verdade; e se achares que a tua natureza é alterável, transcende-te a ti mesmo. Mas recorda-te, quando te transcendes a ti mesmo, transcendes uma alma que raciocina" (De vera religione, 39, 72). Precisamente como ele mesmo ressalta, com uma afirmação muito famosa, no início das Confessiones, autobiografia espiritual escrita para louvor de Deus: "Criastes-nos para Vós, e o nosso coração está inquieto, enquanto não descansa em Vós" (I, 1, 1).

A distância de Deus equivale à distância de si mesmo: "De fato, tu reconhece Agostinho (Confessiones, III, 6, 11) dirigindo-se diretamente a Deus estavas dentro de mim mais que o meu íntimo e acima da minha parte mais alta", interior intimo meo et superior summo meo; a ponto que acrescenta noutro trecho recordando o tempo que precedeu a conversão "tu estavas diante de mim; e eu, ao contrário, tinha-me afastado de mim mesmo, e não me reencontrava; e muito menos te encontrava a ti" (Confessiones, V, 2, 2). Precisamente porque Agostinho viveu em primeira pessoa este percurso intelectual e espiritual, soube transmiti-lo nas suas obras com tanta prontidão, profundidade e sabedoria, reconhecendo em dois outros célebres trechos das Confessiones (IV, 4, 9 e 14, 22) que o homem é "um grande enigma" (magna quaestio) e "um grande abismo" (grande profundum), enigma e abismo que só Cristo ilumina e salva. Isto é importante: um homem que está distante de Deus está também afastado de si mesmo, alienado de si próprio, e só pode reencontrar-se encontrando-se com Deus. Assim chega também a si, ao seu verdadeiro eu, à sua verdadeira identidade.

O ser humano ressalta depois Agostinho no De civitate Dei (XII, 27) é social por natureza, mas anti-social por vício, e é salvo por Cristo, único mediador entre Deus e a humanidade e "caminho universal da liberdade e da salvação", como repetiu o meu predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21): fora deste caminho, que nunca faltou ao gênero humano afirma ainda Santo Agostinho na mesma obra "ninguém jamais foi libertado, ninguém é libertado e ninguém será libertado" (De civitate Dei, X, 32, 2). Enquanto único mediador da salvação, Cristo é a cabeça da Igreja e a ela está misticamente unido a ponto que Agostinho pode afirmar: "Tornamo-nos Cristo. De facto, se ele é a cabeça, nós somos os seus membros, o homem total é Ele e nós" (In Iohannis evangelium tractatus, 21, 8).

Povo de Deus e casa de Deus, a Igreja na visão agostiniana está, portanto estreitamente relacionada com o conceito de Corpo de Cristo, fundada na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental centrada na Eucaristia, na qual o Senhor nos dá o seu Corpo e nos transforma em seu Corpo. Então, é fundamental que a Igreja, povo de Deus em sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja verdadeiramente inserida em Cristo, o qual afirma Agostinho numa lindíssima página "reza por nós, reza em nós, é rezado por nós; reza por nós como nosso sacerdote, reza em nós como nossa cabeça, é rezado por nós como nosso Deus: reconhecemos, portanto nele a nossa voz e em nós a sua" (Enarrationes in Psalmos, 85, 1).

Na conclusão da Carta apostólica Augustinum Hipponensem João Paulo II quis perguntar ao próprio Santo o que tem para dizer aos homens de hoje e responde antes de tudo com as palavras que Agostinho escreveu numa carta ditada pouco antes da sua conversão: "Parece-me que se deve reconduzir os homens à esperança de encontrar a verdade" (Epistulae, 1, 1); aquela verdade que é o próprio Cristo, Deus verdadeiro, ao qual é dirigida uma das orações mais bonitas e mais famosas das Confessiones (X, 27, 38): "Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Estáveis dentro de mim e eu estava fora, e aí Vos procurava; e disforme como era, lançava-me sobre estas coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Mas Vós me chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e curastes a minha cegueira. Exalastes o vosso perfume: respirei-o e agora suspiro por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me, e comecei a desejar ardentemente a vossa paz".

Eis que Agostinho encontrou Deus e durante toda a sua vida fez experiência dele a ponto que esta realidade que é antes de tudo encontro com uma Pessoa, Jesus mudou a sua vida, assim como muda a de quantos, mulheres e homens, em todos os tempos têm a graça de o encontrar. Rezemos para que o Senhor nos conceda esta graça e nos faça encontrar assim a sua paz.

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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI
Quarta-feira, 20 de Fevereiro de 2008

Santo Agostinho de Hipona

Queridos irmãos e irmãs

Depois da pausa dos exercícios espirituais da semana passada voltamos hoje à grande figura de Santo Agostinho, sobre o qual já falei repetidamente nas catequeses da quarta-feira. É o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras, e hoje pretendo falar delas brevemente. Alguns dos escritos agostinianos são de importância fundamental, e não só para a história do cristianismo mas para a formação de toda a cultura ocidental: o exemplo mais claro são as Confessiones, sem dúvida um dos livros da antiguidade cristã ainda hoje muito lido. Como diversos Padres da Igreja dos primeiros séculos, mas em medida incomparavelmente mais ampla, também o Bispo de Hipona exerceu de fato uma influência alargada e persistente, como é demonstrado pela superabundante tradição manuscrita das suas obras, que deveras são numerosíssimas.

Ele mesmo as passou em revista alguns anos antes de morrer nas Retractationes e pouco depois da sua morte elas foram cuidadosamente registradas no Indiculus ("elenco") acrescentado pelo amigo fiel Possídio à biografia de Santo Agostinho, Vita Augustini. O elenco das obras de Agostinho foi realizado com a intenção explícita de salvaguardar a sua memória enquanto a invasão vândala se expandia em toda a África romana e conta mil e trinta escritos enumerados pelo seu Autor, com outros "que não podem ser numerados, porque não os enumerou". Bispo de uma cidade próxima, Possídio ditava estas palavras precisamente a Hipona onde se tinha refugiado e assistira à morte do amigo e quase certamente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal de Agostinho. Hoje, são mais de trezentas as cartas do Bispo de Hipona que sobreviveram e quase seiscentas as homilias, mas elas eram muitas mais, talvez até entre as três mil e as quatro mil, fruto de quarenta anos de pregações do antigo reitor que tinha decidido seguir Jesus e falar já não aos grandes da corte imperial, mas à simples população de Hipona.

E ainda em anos recentes as descobertas de um grupo de cartas e de algumas homilias enriqueceram o nosso conhecimento deste grande Padre da Igreja. "Muitos livros escreve Possídio foram por ele compostos e publicados, muitas pregações foram feitas na igreja, transcritas e corrigidas, quer para contestar os diversos hereges quer para interpretar as sagradas Escrituras dos santos filhos da Igreja. Estas obras ressalta o Bispo amigo são tantas que dificilmente um estudioso tem a possibilidade de as ler e aprender a conhecê-las" (Vita Augustini, 18, 9).

Entre a produção literária de Agostinho, portanto mais de mil publicações subdivididas em escritos filosóficos, apologéticos, doutrinais, morais, monásticos, exegéticos, anti-hereges, além, precisamente, das obras excepcionais de grande alcance teológico e filosófico. Antes de tudo é preciso recordar as já mencionadas Confessiones, escritas em treze livros entre 397 e 400 para louvor de Deus. Elas são uma espécie de autobiografia na forma de um diálogo com Deus. Este gênero literário reflete precisamente a vida de Santo Agostinho, que era uma vida não fechada em si, dispersa em tantas coisas, mas vivida substancialmente como diálogo com Deus e assim uma vida com os outros. Já o título Confessiones indica a especificidade desta autobiografia. Esta palavra confessiones no latim cristão desenvolvido pela tradição dos Salmos tem dois significados, que, contudo se entrelaçam. Confessiones indica, em primeiro lugar, a confissão das próprias debilidades, da miséria dos pecados; mas, ao mesmo tempo, confessiones significa louvor a Deus, reconhecimento a Deus. Ver a própria miséria na luz de Deus torna-se louvor a Deus e agradecimento porque Deus nos ama e nos aceita, nos transforma e nos eleva para si mesmo. Sobre estas Confessiones, que tiveram grande êxito já durante a vida de Santo Agostinho, ele mesmo escreveu: "Elas exerceram sobre mim tal ação enquanto as escrevia e ainda a exercem quando as releio. Estas obras são do agrado de muitos irmãos" (Retractationes, II, 6): e devo dizer que também eu sou um destes "irmãos". E graças às Confessiones, podemos seguir passo a passo o caminho interior deste homem extraordinário e apaixonado por Deus. Menos conhecidas, mas igualmente originais e muito importantes são, outrossim, as Retractationes, compostas em dois livros por volta do ano 427, nas quais Santo Agostinho já idoso realiza uma obra de "revisão" (retractatio) de toda a sua obra escrita, deixando assim um documento literário singular e extremamente precioso, mas também um ensinamento de sinceridade e de humildade intelectual.

O De civitate Dei obra imponente e decisiva para o desenvolvimento do pensamento político ocidental e para a teologia cristã da história foi escrito de 413 a 426, em vinte e dois livros. A ocasião era o saque de Roma, levado a cabo pelos Gotos em 410. Numerosos pagãos ainda vivos, mas também muitos cristãos, disseram: Roma caiu e agora o Deus cristão e os apóstolos já não podem proteger a cidade. Durante a presença das divindades pagãs, Roma era caput mundi, a grande capital, e ninguém podia pensar que teria caído nas mãos dos inimigos. Agora, com o Deus cristão, esta grande cidade já não parecia segura. Portanto, o Deus dos cristãos já não protegia, não podia ser o Deus ao qual confiar-se. Nesta objeção, que tocava profundamente também o coração dos cristãos, Santo Agostinho responde com esta obra grandiosa, o De civitate Dei, esclarecendo o que devemos ou não esperar de Deus, qual é a relação entre o campo político e o campo da fé, da Igreja. Também nos dias de hoje, este livro é uma fonte para definir bem a verdadeira laicidade e a competência da Igreja, a grande e verdadeira esperança que a fé nos proporciona.

Este livro excelso é uma apresentação da história da humanidade governada pela Providência divina, mas atualmente dividida por dois amores. E este é o desígnio fundamental, a sua interpretação da história, que é a luta entre dois amores: o amor a si mesmo, "até à indiferença por Deus", e o amor a Deus", "até à indiferença por si mesmo" (De civitate Dei, XIV, 28), à plena liberdade de si próprio pelos outros, na luz de Deus. Portanto, este é talvez o maior livro de Santo Agostinho, de uma importância permanente. Igualmente importante é o De Trinitate, obra em quinze livros no núcleo principal da fé cristã, a fé no Deus trinitário, escrita em dois tempos: entre 399 e 412, os primeiros doze livros, publicados sem o conhecimento de Agostinho, que por volta de 420 os completou e reviu a obra inteira. Aqui, ele reflete sobre o rosto de Deus e procura compreender este mistério do Deus que é singular, o único criador do mundo, de todos nós e, todavia, que precisamente este Deus único é trinitário, um círculo de amor. Procura compreender o mistério insondável: exatamente o ser trinitário, em três Pessoas, é a mais real e mais profunda unidade do único Deus. O De doctrina Christiana é, no entanto, uma verdadeira e própria introdução cultural à interpretação da Bíblia e, em última análise, ao próprio cristianismo, que teve uma importância determinante na formação da cultura ocidental.

Apesar de toda a sua humildade, Agostinho certamente estava consciente da sua estatura intelectual. Mas para ele, mais importante do que realizar grandes obras de elevado significado teológico, era transmitir a mensagem aos simples. Esta sua intenção mais profunda, que orientou toda a sua vida, manifesta-se numa carta escrita ao colega Evódio, na qual comunica a decisão de suspender momentaneamente o ditado dos livros do De Trinitate, "porque são demasiado cansativos e na minha opinião podem ser entendidos por poucos; por isso, são mais urgentes os textos que, esperamos, venham a ser mais úteis para muitos" (Epistulae, 169, 1, 1). Portanto, para ele era mais útil comunicar a fé de modo compreensível para todos, do que escrever grandes obras teológicas. A responsabilidade profundamente sentida em relação à divulgação da mensagem cristã é sentida também na origem de escritos, como De catechizandis rudibus, uma teoria e também uma prática da catequese, ou o Psalmus contra partem Donati. Os donatistas eram o grande problema da África de Santo Agostinho, um cisma intencionalmente africano. Eles afirmavam: a verdadeira cristandade é africana. Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o grande Bispo lutou durante toda a sua vida, procurando convencer os donatistas que somente na unidade também a africanidade pode ser verdadeira. E para se fazer compreender pelos mais simples, que não conseguiam entender o latim erudito do reitor, disse: devo escrever também com erros gramaticais, num latim muito simplificado. E fê-lo sobretudo neste Psalmus, uma espécie de poesia simples contra os donatistas, para ajudar todas as pessoas a compreenderem que unicamente na unidade da Igreja se realiza para todos realmente a nossa relação com Deus e aumenta a paz no mundo.

Nesta produção destinada a um público mais vasto reveste uma importância particular o número de homilias, muitas vezes pronunciadas "de modo improvisado", transcritas pelos taquígrafos durante a pregação e imediatamente postas em circulação. Entre elas, sobressaem as lindas Enarrationes in Psalmos, muito lidas na Idade Média. Precisamente a prática de publicação dos milhares de homilias de Agostinho muitas vezes sem o controle do autor explica a sua difusão e sucessiva dispersão, mas também a sua vitalidade. Com efeito, imediatamente as pregações do Bispo de Hipona tornavam-se, pela fama do seu autor, textos muito procurados e serviam também para outros Bispos e sacerdotes como modelos, adequados a contextos sempre novos.

A tradição iconográfica, já num afresco lateranense que remonta ao século VI, representa Santo Agostinho com um livro na mão, sem dúvida para expressar a sua produção literária que influenciou em grande medida a mentalidade e o pensamento cristãos, mas para exprimir também o seu amor pelos livros, pela leitura e pelo conhecimento da grande cultura precedente. Quando faleceu nada deixou, narra Possídio, mas "recomendava sempre que se conservasse diligentemente para a posteridade a biblioteca da igreja com todos os códices", sobretudo os das suas obras. Nelas, sublinha Possídio, Agostinho está "sempre vivo" e beneficia quem lê os seus escritos não obstante, conclui ele, "na minha opinião puderam tirar mais proveito do seu contacto aqueles que o conseguiram ver e ouvir, quando falava pessoalmente nas igrejas, e sobretudo aqueles que tiveram a experiência da sua vida quotidiana no meio do povo" (Vita Augustini, 31). Sim, também para nós teria sido muito bom poder ouvi-lo pessoalmente. Todavia, ele está deveras vivo nos seus escritos, está presente em nós e assim sentimos também a vitalidade permanente da fé, à qual ele entregou toda a sua vida.

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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI
Quarta-feira, 27 de Fevereiro de 2008

Santo Agostinho de Hipona

Queridos irmãos e irmãs!

Com o encontro de hoje gostaria de concluir a apresentação da figura de Santo Agostinho. Depois de termos analisado a sua vida, as suas obras e alguns aspectos do seu pensamento, hoje gostaria de falar de novo sobre a sua vicissitude interior, que fez dele um dos maiores convertidos da história cristã. Dediquei a esta sua experiência em particular a minha reflexão durante a peregrinação que realizei a Pavia, no ano passado, para venerar os despojos mortais deste Padre da Igreja. Deste modo quis expressar-lhe a homenagem de toda a Igreja católica, mas também tornar visível a minha pessoal devoção e reconhecimento em relação a uma figura à qual me sinto muito ligado pela parte que teve na minha vida de teólogo, de sacerdote e de pastor.

Ainda hoje é possível repercorrer a vicissitude de Santo Agostinho graças sobretudo às Confissões, escritas para louvor de Deus e que estão na origem de uma das formas literárias mais específicas do Ocidente, a autobiografia, isto é, a expressão pessoal da consciência de si. Pois bem, quem quer que tome conhecimento deste livro extraordinário e fascinante, ainda hoje muito lido, apercebe-se facilmente do modo como a conversão de Agostinho não tinha sido improvisada nem plenamente realizada desde o início, mas possa antes ser definida um verdadeiro caminho, que permanece um modelo para cada um de nós. Este itinerário teve certamente o seu ápice com a conversão e depois com o batismo, mas não se concluiu naquela Vigília pascal do ano 387, quando em Milão o retórico africano foi batizado pelo Bispo Ambrósio. De fato, o caminho de conversão de Agostinho prosseguiu humildemente até ao fim da sua vida, a ponto que se pode verdadeiramente dizer que as suas diversas etapas podem-se distinguir facilmente três são uma única grande conversão.

Santo Agostinho foi um pesquisador apaixonado da verdade: foi-o desde o início e depois em toda a sua vida. A primeira etapa do seu caminho de conversão realizou-se precisamente na progressiva aproximação ao cristianismo. Na realidade, ele tinha recebido da mãe Mônica, à qual permaneceu sempre muito ligado, uma educação cristã e, apesar de ter vivido durante os anos juvenis uma vida desregrada, sentiu sempre uma atração profunda por Cristo, tendo bebido o amor pelo nome do Senhor com o leite materno, como ele mesmo ressalta (cf. Confessiones, III, 4, 8). Mas também a filosofia, sobretudo de índole platônica, tinha contribuído para o aproximar ulteriormente a Cristo manifestando-lhe a existência do Logos, a razão criadora. Os livros dos filósofos indicavam-lhe que há a razão, da qual vem depois todo o mundo, mas não lhe diziam como alcançar este Logos, que parecia tão distante. Só a leitura do epistolário de São Paulo, na fé da Igreja católica, lhe revelou plenamente a verdade. Esta experiência foi sintetizada por Agostinho numa das páginas mais famosas das Confessiones: ele narra que, no tormento das suas reflexões, tendo-se retirado num jardim, ouviu improvisamente uma voz infantil que repetia uma cantilena que nunca tinha ouvido: tolle, lege, tolle, lege, "toma, lê, toma, lê" (VIII, 12, 29). Recordou-se então da conversão de António, pai do monaquismo, e com solicitude voltou ao código paulino que até há pouco tinha nas mãos, abriu-o e o seu olhar caiu na passagem da epístola aos Romanos onde o Apóstolo exorta a abandonar as obras da carne e a revestir-se de Cristo (13, 13-14). Tinha compreendido que aquela palavra naquele momento se dirigia pessoalmente a ele, vinha de Deus através do Apóstolo e indicava-lhe o que fazer naquele momento. Sentiu assim dissipar-se as trevas da dúvida e encontrou-se enfim livre de se doar totalmente a Cristo: "Tinhas convertido a ti o meu ser", comenta ele (Confessiones, VIII, 12, 30). Foi esta a primeira e decisiva conversão.

O retórico africano chegou a esta etapa fundamental do seu longo caminho graças à sua paixão pelo homem e pela verdade, paixão que o levou a procurar Deus, grande e inacessível. A fé em Cristo fez-lhe compreender que Deus, aparentemente tão distante, na realidade não o era. Ele, de fato, tinha-se feito próximo de nós, tornando-se um de nós. Neste sentido a fé em Cristo levou a cumprimento a longa pesquisa de Agostinho sobre o caminho da verdade. Só um Deus que se fez "próximo", um de nós, era finalmente um Deus ao qual se podia rezar, pelo qual e com o qual se podia viver. Este é um caminho a percorrer com coragem e ao mesmo tempo com humildade, na abertura a uma purificação permanente da qual cada um de nós tem sempre necessidade. Mas com aquela Vigília pascal de 387, como dissemos, o caminho de Agostinho não estava concluído. Tendo regressado à África e fundado um pequeno mosteiro retirou-se aí com poucos amigos para se dedicar à vida contemplativa e de estudo. Este era o sonho da sua vida. Agora era chamado a viver totalmente pela verdade, com a verdade, na amizade de Cristo que é a verdade. Um sonho agradável que durou três anos, até quando foi consagrado sacerdote, a seu mau grado, em Hipona e destinado a servir os fiéis, continuando a viver com Cristo e por Cristo, mas ao serviço de todos. Isto era para ele muito difícil, mas compreendeu desde o início que só vivendo para os outros, e não simplesmente para a sua contemplação particular, podia realmente viver com Cristo e por Cristo. Assim, renunciando a uma vida apenas de meditação, Agostinho aprendeu, muitas vezes com dificuldade, a pôr à disposição o fruto da sua inteligência em benefício do próximo. Aprendeu a comunicar a sua fé ao povo simples e a viver assim para ela naquela que se tornou a sua cidade, desempenhando incansavelmente uma atividade generosa e difícil que descreve do seguinte modo num dos seus belos sermões: "Continuamente pregar, discutir, repreender, edificar, estar à disposição de todos é uma grande tarefa, um grande peso, uma enorme fadiga" (Serm. 339, 4). Mas ele assumiu sobre si este peso, compreendendo que precisamente assim podia estar mais próximo de Cristo. Compreender que se chega aos outros com simplicidade e humildade, foi esta a sua verdadeira e segunda conversão.

Mas há uma última etapa do caminho agostiniano, uma terceira conversão: a que o levou todos os dias da sua vida a pedir perdão a Deus. Inicialmente tinha pensado que quando fosse batizado, na vida de comunhão com Cristo, nos Sacramentos, na celebração da Eucaristia, teria alcançado a vida proposta pelo Sermão da montanha: a perfeição doada no batismo e reconfirmada na Eucaristia. Na última parte da sua vida compreendeu que o que tinha dito nas suas primeiras pregações sobre o Sermão da montanha isto é, que agora nós como cristãos vivemos este ideal permanentemente era errado. Só Cristo realiza verdadeira e completamente o Sermão da montanha. Nós temos sempre necessidade de ser lavados por Cristo, que nos lava os pés, e por Ele renovados. Temos necessidade de uma conversão permanente. Até ao fim temos necessidade desta humildade que reconhece que somos pecadores a caminho, enquanto o Senhor nos dá a mão definitivamente e nos introduz na vida eterna. Agostinho faleceu com esta última atitude de humildade, vivida dia após dia.

Esta atitude de humildade profunda diante do único Senhor Jesus introduziu-o na experiência de humildade também intelectual. De fato, Agostinho, que é uma das maiores figuras na história do pensamento, quis nos últimos anos da sua vida submeter a um lúcido exame crítico as suas numerosas obras. Tiveram assim origem as Retractationes ("revisões"), que deste modo inserem o seu pensamento teológico, verdadeiramente grande, na fé humilde e santa daquela a que chama simplesmente com o nome de Catholica, isto é, da Igreja. "Compreendi escreve precisamente neste livro muito original (I, 19, 1-3) que um só é verdadeiramente perfeito e que as palavras do Sermão da montanha estão totalmente realizadas num só: no próprio Jesus Cristo. Toda a Igreja, ao contrário todos nós, inclusive os apóstolos devemos rezar todos os dias: perdoai-nos os nossos pecados assim como nós os perdoamos a quem nos tem ofendido".

Convertido a Cristo, que é verdade e amor, Agostinho seguiu-o toda a vida e tornou-se um modelo para cada ser humano, para nós todos em busca de Deus. Por isto quis concluir a minha peregrinação a Pavia recomendando idealmente à Igreja e ao mundo, diante do túmulo deste grande apaixonado de Deus, a minha primeira Encíclica, intitulada Deus caritas est. De fato, ela deve muito, sobretudo na sua primeira parte, ao pensamento de Santo Agostinho. Também hoje, como no seu tempo, a humanidade precisa de conhecer e, sobretudo viver esta realidade fundamental: Deus é amor e o encontro com ele é a única resposta às inquietações do coração humano. Um coração habitado pela esperança, talvez ainda obscura e inconsciente em muitos dos nossos contemporâneos, mas que para nós cristãos abre já hoje ao futuro, a ponto que São Paulo escreveu que "na esperança somos salvos" (Rm 8, 24). Quis dedicar à esperança a minha segunda Encíclica, Spe salvi, e também ela é amplamente devedora a Agostinho e ao seu encontro com Deus.

Num bonito texto Santo Agostinho define a oração como expressão do desejo e afirma que Deus responde alargando a Ele o nosso coração. Por nosso lado, devemos purificar os nossos desejos e as nossas esperanças para acolher a doçura de Deus (cf. In I Ioannis, 4, 6). De fato, só ela, abrindo-nos também aos outros, nos salva. Rezemos portanto para que na nossa vida nos seja concedido todos os dias seguir o exemplo deste grande convertido, encontrando como ele em cada momento da nossa vida o Senhor Jesus, o único que nos salva, purifica e concede a verdadeira alegria, a verdadeira vida.

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