segunda-feira, 14 de julho de 2014

São Camilo de Lellis


Impulsivo e aventureiro, este militar se rendeu ao amor infinito de Jesus Crucificado e formou uma companhia de heróis da caridade, que se dedicam a servir os enfermos como uma terna mãe.

As vezes somos tentados a pensar que só é verdadeiramente Santo quem nunca cometeu a menor falta nem possui qualquer defeito, conservando alva e intacta sua veste batismal no decurso da vida. Mas como ignorar, entre numerosos Bem-aventurados, a santidade indiscutível de São Paulo Apóstolo, de Santo Agostinho ou daquela que é invocada como a primeira entre as virgens na Ladainha de Todos os Santos, Santa Maria Madalena?

São três fulgurantes casos de almas que se converteram na idade adulta, após terem cometido graves pecados. Deus — que é Misericórdia e Bondade — os resgatou por meio de graças superabundantes e os chamou para admiráveis missões a serviço da Santa Igreja. Pela fidelidade a estas graças, eles alcançaram a honra dos altares e deixaram, com o exemplo de sua vida, um rastro luminoso no firmamento dos Santos. Tal é a vida de São Camilo de Lellis.

Um soldado dissoluto

Nascido em Bucchianico, Itália, no domingo de Pentecostes de 1550, teve a infância marcada pela piedosa formação de sua mãe, Camila Compellis. Acostumada ao governo da casa, devido às longas ausências do marido, Giovanni de Lellis, grande militar mercenário, ela sabia harmonizar a disciplina e a bondade na educação do filho.

Dotado de um caráter impulsivo e forte, o menino sentiu-se atraído desde pequeno pelo estilo aventureiro da vida do pai, capitão famoso por haver servido a vários reinos da Europa. Aos 17 anos, Camilo dirigiu-se a Veneza a fim de alistar-se na luta contra os corsários turcos. Não muito tempo depois, encontrava o pai em Ancona, pois este também decidira lutar em Veneza. Mas, já idoso, Giovanni de Lellis foi tomado por uma grave doença e faleceu nos braços do filho, a meio caminho, antes que o pudesse levar de volta a Bucchianico.

Sentindo-se só — a mãe falecera alguns anos antes —, Camilo deixou- se arrastar pelos vícios do jogo e da bebida, tão comuns nos rudes ambientes soldadescos daquele então. Tornou-se um vagabundo e passou a viver do dinheiro que ganhava nas tabernas. Confessou, mais tarde, ter chegado a apostar sua própria camisa por nada mais possuir, sem, entretanto, jamais haver cedido à tentação do roubo. E afirmava, com gratidão, que Deus o preservara de cair no pecado da impureza.

Começou, nessa época, a sentir uma profunda dor na perna, na qual surgira uma chaga misteriosa que o acompanhou durante toda a vida e tornou-se um fator decisivo para sua conversão. Dela foi se tratar no conhecido hospital São Tiago dos Incuráveis, em Roma. Sem recursos para pagar as despesas, ofereceu seus préstimos como criado e ali teve o primeiro contato com o mundo dos enfermos. Contudo, acabou sendo expulso alguns meses mais tarde, devido a seu difícil temperamento.

Parcialmente curado, voltou a alistar-se como soldado e participou ainda de combates na Tunísia. No regresso para terras italianas, uma violenta tempestade surpreendeu sua embarcação perto de Nápoles. Ante o iminente risco de morte, fez o voto de vestir o hábito de São Francisco de Assis caso escapasse com vida. Passado o perigo, esqueceu-se da promessa, recaiu em seus inveterados vícios e seguiu perambulando pela Itália.

Rendido ao amor infinito de Jesus

Esbanjou no jogo todos os seus bens e ficou reduzido a pedir esmolas às portas da catedral da Manfredonia. Vendo aquele jovem espadaúdo e robusto em tão miserável situação, um caridoso ancião, chamado Antônio di Nicastro, compadeceu-se dele e ofereceu-lhe o trabalho de operário no convento dos capuchinhos, onde se realizavam algumas obras. O ambiente de recolhimento e o trato bondoso ali recebido foram abrandando suas impetuosas paixões, tornando-lhe possível ordenar um pouco sua vida.

Contava 25 anos quando o enviaram a um convento vizinho para buscar certa quantidade de provisões recebidas de esmola. Era o dia de Nossa Senhora da Candelária, 2 de fevereiro de 1575. Caminhava ele ao lado da mula de carga do convento e esta empacou de repente. Após esgotar, debalde, todos os recursos para fazê-la recomeçar a marcha, pôs-se a gritar com a pobre besta, dizendo-lhe grandes desaforos, como se ela pudesse entender algo. Tudo em vão...

Aprouve a Deus conceder-lhe, neste momento, a graça de ver-se retratado no comportamento daquele animal irracional. Percebeu que da mesma forma tinha procedido ao longo de sua vida: de nada lhe adiantaram os ensinamentos religiosos recebidos de sua extremosa mãe, a sacudida na consciência em meio à tempestade ou a bondade do frei guardião, seus reiterados esforços para fazê-lo entender que nossa alma é um campo de batalha, onde só vence quem tem a autêntica valentia de render-se nas mãos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim como a mula se obstinava em permanecer imóvel, ele teimava em não se emendar!

Caiu de joelhos no meio da estrada poeirenta e, com mão trêmula, tirou do bolso um Crucifixo que lhe dera um tio há tanto tempo... Levantando- o à altura do rosto, contemplou a “figura de seu Deus crucificado, suspenso e cravado na Cruz por amor a ele, para pagar o horrendo e terrível castigo merecido por seus inumeráveis pecados”.1 Com lágrimas de arrependimento e cheio de esperança, rendeu-se ao amor infinito de Jesus e, como o guerreiro que avança para a batalha, decidiu mudar de vida. “Camilo de Lellis soube inesperadamente e sem dúvida que era, afinal, um soldado verdadeiramente valente”!

Havia encontrado sua vocação!

De volta ao convento, transformado, pediu admissão na Ordem e tornou-se noviço capuchinho com o nome de frei Cristóvão. Seus irmãos de hábito o chamavam de “frei Humilde”,3 por seu empenho em disputar o último lugar, ser o servo de todos e ocupar- se dos serviços mais penosos e repugnantes. No entanto, a chaga de sua perna se agravava com o roçar do rústico tecido do hábito, e viu-se ele forçado a regressar ao hospital. Aparentemente recuperado, regressou ao convento capuchinho e retomou a vida comunitária, mas a úlcera reapareceu com mais ímpeto, obrigando-o a desligar-se da Ordem.

Pela terceira vez internou-se no hospital São Tiago, em fins de 1579. Agora era outro homem, desejoso de entregar-se por inteiro ao serviço dos doentes. E, desde então, até o dia de sua morte — 35 anos depois —, “toda a sua existência transcorrerá nos hospitais sem outro afã e outro desejo que o de exercitar sua ardente caridade com os pobres enfermos”.4 Os administradores, edificados por sua dedicação e considerando sua notável habilidade, o nomearam Mestre da Casa, cargo equivalente ao de superintendente executivo.

Um prodígio veio confirmar o acerto desta escolha. São Camilo passara longas horas animando um pobre homem, a quem seria amputada uma perna no dia seguinte. Quando o deixou, ele estava tão bem disposto que adormeceu tranquilo. Na hora marcada para a amputação, os cirurgiões constataram que a perna inexplicavelmente “estava curada de forma inesperada”.5

Foi quando despontou em sua alma o ardente desejo de congregar homens dispostos a dar assistência corporal e espiritual aos doentes, por puro amor a Deus, conscientes de que servi-los não era senão servir ao Divino Salvador: estive “enfermo e Me visitastes” (Mt 25, 36). Havia encontrado sua vocação!

Uma companhia de heróis da caridade

Camilo começou por tentar recrutar alguns elementos entre os funcionários do hospital, mas estes se mostraram muito chocados com a ideia de uma vida de tanta abnegação, sem lucro ou pagamento. Graças à força de seu bom exemplo e à crescente fama de suas virtudes, porém, conseguiu dar início a uma pia associação com o objetivo de prestar assistência aos doentes. Religiosos e noviços de várias ordens religiosas, sobretudo da Companhia de Jesus, vinham amiúde exercitar-se com ele nestas obras de caridade. Os padres jesuítas encaminhavam-lhe jovens nos quais discerniam vocação para este serviço. O Santo os acolhia de braços abertos e os estimulava: “Irmãos, considerai que os enfermos são a pupila e o coração de Deus e o que fazeis para estes pobrezinhos é feito para o próprio Deus”.

Sem embargo, Camilo aspirava a muito mais: formar uma companhia de heróis da caridade, que se dedicassem a servir os enfermos como uma terna mãe. Passava noites inteiras em oração e se mortificava, implorando aos Céus ajuda para tal obra. Conseguiu reunir cinco varões de escol, os quais prometeram segui-lo “na vida e na morte, na prosperidade e nas dificuldades”.7 Improvisaram num quarto do hospital um oratório, onde se reuniam para manter acesa a chama do ideal. O santo Fundador “parecia um Serafim pelas ardentes exortações que lhes fazia”.

“Esta obra é minha, e não tua!”

Não obstante, aos homens chamados para as obras de Deus não lhes faltam tribulações. Certo dia, dando acolhida a calúnias invejosas, a administração do hospital proibiu aquelas reuniões e mandou desmontar o oratório. Nesta mesma noite, cheio de aflição, Camilo passou longo tempo rezando diante do seu Crucifixo. Pedia uma inspiração, uma luz... Imerso nestas cogitações, adormeceu e viu a imagem do Divino Crucificado movendo docemente a cabeça, a dizer-lhe: “Não temas, ó pusilânime. Segue adiante, que Eu te ajudarei e estarei contigo!”.

Acordou com a alma inundada de alegria! Relatou a visão aos companheiros e decidiram continuar a se reunir, em segredo, na capela do hospital. Surgiram, todavia, novas e maiores dificuldades. Assaltou-o a dúvida sobre a realidade daquela visão noturna e, em consequência, da divina aprovação ao instituto nascente. Cheio de dor, prostrou-se de novo diante do venerando Crucifixo. E eis que o Salvador desprende os braços da Cruz, os estende em sua direção e repete com inefável doçura: “Por que te afliges, ó pusilânime? Continua a empresa, que Eu te ajudarei, pois esta obra é minha e não tua!”.10

Fortalecido por estas palavras, Camilo — que desejava ser sacerdote para exercer com maior eficácia seu apostolado — ingressou no Colégio Romano, sendo ordenado algum tempo depois, aos 34 anos. Congregou, então, seu pequeno grupo e constituíram uma comunidade.

Seu modo de vida foi aprovado por Sisto V, em 1586, que deu à nova instituição o nome de Congregação dos Ministros dos Enfermos, a qual tomou como hábito uma capa negra ornada com uma cruz vermelha, portada sobre a batina clerical. Cinco anos mais tarde, Gregório XIV a elevou à categoria de ordem religiosa, com o nome de Ordem de Clérigos Regulares Ministros dos Enfermos. Mas não demorou muito a ficar conhecida como Ordem dos Camilianos, em referência a seu fundador e primeiro superior geral.

Entrega sem limite aos enfermos

Com inesgotável zelo, São Camilo e seus religiosos exerciam suas atividades sobretudo no Hospital do Espírito Santo, próximo ao Vaticano. Os estabelecimentos de saúde da época deixavam muito a desejar em matéria de higiene, instalações e profissionais qualificados.

Pode-se imaginar o sofrimento dos doentes entregues aos cuidados de empregados mal remunerados e, com frequência, grosseiros. Além disso, eram muitas vezes alojados em quartos onde a deficiente ventilação favorecia a proliferação dos vírus e o mau odor impregnava os ares. Era neste ambiente repugnante à natureza humana, do qual todos procuravam fugir, que os camilianos passavam o dia inteiro, socorrendo com amor e alegria aqueles infelizes.

O Santo Fundador também estendeu sua benéfica atuação junto aos encarcerados e aos moribundos. Por mais fatigado que estivesse, seu ardor nunca diminuía e sua constância era o maior incentivo para os outros darem mais de si. A valentia destes heróis da caridade brilhou mais ainda por ocasião das pestes e epidemias que assolavam aquelas regiões. “Sem vacilar um momento, vendo a morte dizimar suas fileiras, dedicavam-se em esgotantes jornadas a cuidar dos atacados pela peste”.

Sem se preocupar com a úlcera da perna sempre aberta nem com outras doenças que lhe causavam verdadeiro suplício, “passava longas horas no hospital, cuidando dos enfermos, quase sem dormir, com um regime alimentar suficiente apenas para, literalmente, não morrer de fome”.

Uma obra que hoje atua em 35 países

A promissora expansão dos camilianos por toda a Península Itálica abriu para o fundador outro front de combate: uma dura luta para consolidar e manter intacto o carisma da instituição. Com humildade e inabalável firmeza, fez valer seu carisma de fundador não só contra objetantes externos, mas também perante religiosos rebeldes da própria Ordem. Obtida a vitória nesta batalha, estava cumprida sua missão neste mundo e podia partir para receber a recompensa demasiadamente grande (cf. Gn 15, 1).

E Deus não tardou a chamá-lo. Em meados de 1614, aos 64 anos de idade, viu-se obrigado a guardar o leito para recompor um pouco sua saúde minada por décadas de intensas atividades. Entretanto, tomado de saudades de seus queridos doentes do hospital do Espírito Santo, e pressentindo que morreria em breve, almejava vê-los ainda uma vez. Quando o médico permitiu-lhe sair do quarto para respirar ar fresco, mandou seus filhos espirituais levarem- no ao hospital, onde, emocionado, percorreu as inúmeras fileiras de macas e leitos, despedindo-se de cada um. Todos choravam ao sentir seu carinho e paternalidade.

A Divina Providência ainda lhe pediu que sofresse uma longa e dolorosa agonia. Na noite de 14 de julho, quando o sacerdote rezava: “Mitis, atque festivus, Christi Iesu tibi aspectus appareat — Que o suave e alegre rosto de Jesus Cristo te apareça”, 13 sorriu e exalou o último suspiro.


Espalhou-se pela Cidade Eterna a notícia de seu falecimento e formou-se diante do convento uma multidão, desejosa de prestar-lhe uma última homenagem, de pedir uma graça, uma cura, uma conversão. Tal foi o alvoroço que a autoridade pública precisou intervir para organizar as filas e manter a ordem. Este soldado de Cristo enriqueceu a Santa Igreja com uma magnífica obra que hoje, 400 anos depois, atua em 35 países dos cinco continentes, fazendo brilhar junto aos doentes e necessitados a luz de sua heroica e valente caridade. Bento XIV o canonizou em 1746, e Leão XIII, em 1886, o declarou Padroeiro dos Enfermos e dos Hospitais, junto com São João de Deus.

(Irmã Mary Teresa MacIsaac, EP; Revista Arautos do Evangelho, Julho/2014, n. 151, p. 32 à 35)

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